Olga Fonseca - impressões de uma leitora sobre Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera

Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera: impressões de uma leitora

Acabei de ler pela segunda vez o último romance de António Lobo Antunes.

Alguns poderão estranhar ou interrogar-se sobre os motivos que nos fazem revisitar um texto, após uma primeira leitura.  Poderia elencar uma série de motivos, sabendo que o principal é, tão-somente, o prazer de ler o romancista da nossa eleição e, sobretudo, quando convoca para núcleo da sua obra temas que, por alguma razão, «mexem» connosco, com o que vai na nossa cabeça, ora de forma mais nítida, ora de forma mais enviesada, insinuando-se apenas. 

Reconheço que estou a partir em desvantagem: já outras vozes, indubitavelmente mais sábias, mais competentes, se pronunciaram sobre a obra. No meu caso, parece adaptar-se o título da obra de Harold Bloom – A Angústia da Influência – só que ao contrário. Explico: nenhum leitor fica imune ou impassível à leitura que outros (habitualmente críticos literários) fizeram do romance e por mais esforço que façamos para não irmos «espreitar» o que escreveram, o que disseram, acabamos sempre por ler as suas (deles) leituras. Verdadeiros spoilers para uns, preciosas ajudas para outros que não querem ir cegos ou virgens para a leitura da obra. E é uma verdadeira frustração, quando nos damos conta que outros já tiveram oportunidade de dizer aquilo que nós próprios teríamos gostado de dizer em primeira mão. Enfim, também não podemos esquecer o princípio, segundo o qual, uma obra é tanto mais literária, quantas mais leituras suscitar. Neste ponto, talvez nos possamos redimir com as lições de Umberto Ecco, in Obra Aberta, e Lector in Fabula. Adiante, e um aviso à navegação: não gostaria que vissem neste meu texto, relativo ao último romance antuniano, qualquer pretensão; antes o que anuncio no título: umas simples impressões de uma leitura apaixonada pela obra de António Lobo Antunes. 

É por de todos sabido que o primeiro contacto que o leitor tem com o livro, enquanto objecto de fruição, lhe chega pelo nome do autor e pelo título, elemento paratextual por excelência, que figura no frontispício da obra. Todo um horizonte de expectativas se começa a desenhar e comigo não foi excepção. Sobre o nome do autor, não valerá a pena repetir o que já escrevi sobre a paixão e a fidelidade a António Lobo Antunes. Já o título (hall de entrada na obra, segundo Jorge Luís Borges) exigiu uma leitura aturada, várias vezes repetida mentalmente, como se dele quisesse extrair a seiva que alimentou o romance. Também não é novidade para ninguém que António Lobo Antunes não descura a importância do título e que, nos últimos romances, tem privilegiado títulos longos, inspirados ou pedidos emprestados a outros escritores. Neste caso, impossível desligar o título da imagem escolhida para a capa do romance (pelo menos na versão por mim adquirida): se pretendesse recorrer a uma linguagem cinematográfica, deveria dizer que se trata de um plano americano, exibindo a imagem de uma senhora idosa, quase numa posição de pose para uma foto, mas algo correu mal com a revelação da mesma, porquanto a cabeça da senhora não só está desfocada, como, e sobretudo, está francamente deformada, distorcida. O título mais a imagem de capa tornam-se, pois, altamente significativos. Inferi: o autor quis explorar o que se passa com o cérebro humano, a partir de uma certa idade. Por outro lado, o título sugeria-me uma espécie de dedicatória, como as que surgem no interior de trabalhos ensaísticos ou académicos. Quem seria aquela a quem o autor dedicava a obra e que, curiosamente, estava sentada no escuro à sua [do autor, assim o entendi] espera? Já o nome escuro me parecia carregado ter uma acepção negativa, de ligação com a ideia de morte. Até porque um leitor com competência enciclopédica ou cultural não pode ignorar aspectos da vida do autor empírico: Lobo Antunes.

Na contra-capa, um rasgado elogio publicado no El País, seguido de uma imagem de um galgo. Nada despiciendo, como conferiria mais tarde. 

O apelo para entrar tornou-se, portanto, irrecusável.

Folheando a obra, e no que diz respeito à sua estrutura externa, rapidamente me dei conta de lhe subjazer uma inequívoca simetria (palavra a que associo a ideia de perfeição, de equilíbrio): o romance inicia-se com um Prólogo (este sim, verdadeiro hall de entrada para os leitores), seguido de três partes a que o autor deu o nome de andamento (palavra certamente retirada do léxico musical), cada um organizado em oito capítulos. 

Assim, é desde logo no Prólogo que o leitor é confrontado com o acto de rememoração, mas também com a ideia de estranho ou insólito, porquanto a personagem feminina acorda com a nítida sensação de que tudo naquele espaço (à excepção da porta) mudou de lugar. Notei, também, que o discurso da personagem feminina não se distingue do resto do enunciado, à excepção das falas de outra personagem feminina, que aparecem destacadas no enunciado textual pelo recurso ao travessão, antecedido de parágrafo. Aliás, mais adiante, verificamos que o autor recorre ao mesmo artifício quando transcreve as falas de outras personagens, como o sobrinho do meu marido, os pais da idosa, o médico, o porteiro do teatro, o senhor Barata, entre outras: 

«… o que se passou durante a noite expliquem-me (…)
– A gente ao acordar demora a habituar-se ao dia.
e não é verdade, não me custa habituar-me ao dia, custa-me que troquem coisas sem
me dizerem nada, (…) e não me dão cavaco, a senhora de idade (…) ajudando-me a
sentar» (p.11; o negrito é meu)

Subitamente, a memória da personagem feminina voa para Faro, viaja até à sua infância, e vê-se, criança, na casa parental. A partir deste momento, o leitor apercebe-se que o autor, ou esta voz narratorial que alguns atribuem sempre à idosa, vai abolir e sobrepor todas as fronteiras espaciais e temporais, como se espaço e tempo pudessem dessa forma condensar-se como quem maneja uma concertina de foles. Entretanto, não nos escapa uma belíssima sinestesia que decorre da analogia que é feita entre o pedido que a senhora de idade faz para que não derrame o chá «– Lembre-se que já se sujou uma vez» e o movimento do gato ao deslizar da cama para o chão: «o gato deslizava líquido para o chão» (p.11; o negrito é meu).

Depressa nos apercebemos que ao longo do romance esta sobreposição ou confusão de recordações, tempos e lugares vai ser uma constante. Trata-se, portanto, de um romance sobre a memória ou mais precisamente, sobre o seu esboroar, até à sua total degradação, momento que ocorre, quando a demência da personagem atinge o paroxismo e passa a ver, a ouvir e a responder aos pais que vieram de Faro, visitá-la a Lisboa (cidade onde reside há anos), quando, no Prólogo, informa os leitores que os mesmos «já morreram há séculos» (p.12). Entendi esse momento (no terceiro andamento), como o que precede a sua morte. É verdade que o autor não identifica a doença; sofrerá de Alzheimer? Terá sido vítima de um AVC, porquanto há uma passagem em que refere dificuldades em movimentar «a mão esquerda que às vezes, não sei porquê, me falha» (p.24)? Será um tumor cerebral? Nada nos é garantido e talvez esse pormenor seja de somenos importância, porquanto o que desconcerta, e até mesmo me assusta, enquanto leitora (a literatura, com as suas personagens, também é geradora de efeitos, como defendeu Phillipe Hamon) é a capacidade, ou a estranha forma de lucidez com que o autor dotou a idosa de «78 anos» em vários momentos da narrativa. O que parece paradoxal.

No primeiro andamento, apercebemo-nos de que as lembranças fluem ou são motivadas pela presença de certos objectos. Apercebemo-nos, também, de que a personagem é dominada por obsessões. Por exemplo, no primeiro andamento, é sobretudo a ideia de um galgo cor-de-rosa que ladra durante a noite, acordando-a, um bibelot que exibe uma rapariga com um cisne. Há, contudo, uma obsessão que atravessa o romance de uma ponta à outra e que tem a ver com um crucifixo pendurado sobre a cama dos pais e cujo movimento, mais ou menos ritmado, mais ou menos intenso ou o seu total silenciamento está sempre ligado à memória do acto sexual, sobretudo, dos pais (que em pequena não percebia) e que se repitará, quando casada, com o seu segundo marido. Com efeito, contabilizei oitenta recorrências do vocábulo «crucifixo».

Se a personagem é um construto, como lhe chamou um crítico americano, ou seja, resulta de um somatório de traços caracterizadores com que o autor a vai construindo, apercebemo-nos de outra obsessão que diz respeito ao pedido que o segundo marido lhe dirige, quando decorre o acto sexual. Trata-se da frase «– Diz, amor, diz» a que ela responde «eu sem vontade nenhuma um /– Amor» (p.243). Com isto, pretendo dizer que o autor torna a personagem feminina anafrodisíaca, o que leva o director do teatro a ter um ataque de raiva contra a mesma, quando pretende levar a cabo o acto sexual no seu gabinete e ela, de tão jovem («dezassete anos»), desajeitada, é incapaz de lhe corresponder (vide p.246).

A destruição da personagem é de tal ordem, que nunca nos é dito com certeza qual o seu nome. Há uma passagem em que é proferido o nome Celeste (p.34) e duas páginas a seguir o de dona Cidália (p.36). Mas o leitor, tal como a personagem, fica confuso. Ora, o nome é o que nos dá identidade, existência, a partir do momento em que até o nosso nome ignoramos, deixamos de existir enquanto «pessoa». Não deixa de ser curioso, a insistência em nomes começados por <C>, até porque a personagem suspeitava que antes dela tinha havido uma irmã chamada Corália

Por outro lado, e à medida que a doença progride, a personagem tem ainda a capacidade de reconhecer que perdeu as emoções, a capacidade de sentir:

«Às vezes não é que esteja triste, não estou triste, nunca mais
estive triste (…) não é que me sinta mal, não me sinto mal, não
sinto nada (…)» (p.253)

E tudo isto são memórias, recordações que a personagem saca do seu cérebro.

Entretanto, e para além do tema da doença (outra obsessão; o pai morre com uma doença do fígado; o avô de outra maleita, «uma tia Alice circunflexa»), da perda da faculdade da linguagem, outros temas, o autor convoca para o romance: o da solidão, o da invasão do corpo, designadamente, quando a senhora de idade procede à sua higiene e é-lhe difícil não sentir um certo pudor, a violência e o desprezo exercidos sobre os idosos, designadamente vindos da parte do sobrinho do marido e da sua mulher, para quem ela não passa de um fardo e desejam a todo o custo que ela desapareça para se apossarem dos seus parcos bens (o que começa ainda em vida, com as suas jóias).

Voltando ao título do romance, há duas ou três passagens que me levaram a identificar aquela que está sentada no escuro à minha espera com a mãe da personagem. A primeira, quando refere «a minha mãe morta sentada na cadeira dela com o terço na mão» (p.115); a segunda e, certamente a mais forte, quando diz «a certeza que uma senhora em silêncio sentada no escuro à espera deles, (…) num gestozinho breve / – Tu» (p.332) e, finalmente, «– Que pena filha ires morrer logo hoje» (p.342).

Para terminar, e apreciando aquelas modulações de voz que António Lobo Antunes tem, quando é entrevistado, as suas pausas, o seu discurso quantas vezes elíptico, como quem espera que o ouvinte siga o seu raciocínio e preencha o espaço do não dito, importa dizer o como tal surge, também, no enunciado narrativo. É surpreendente, emotivo e deixou-me (quantas vezes, meu Deus!) presa a determinadas construções frásicas, que outros poderiam ver como uma violação das regras de sintaxe. A título de exemplo e porque já vão longas estas minhas impressões de leitora, demos como exemplo, as seguintes: «de modo que daqui a pouco chuva de certeza» (p.18), ou até o entrelaçar de frases, cortando intencionalmente as palavras, para intervalar outras frases: «que esfregava no, eu a ordenar ao galgo / – Calado/ guardanapo, (…) (p.18) ou «(…) magra, de cabelo pin, já não vestida de garota, vestida de mulher, tado (…) (p.23)

Em suma, Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera é mais um romance de António Lobo Antunes onde o movimento descendente – «do cérebro para a mão» – como o mesmo referiu, me deixou fascinada, emocionada por este «saber falar» das angústias e das misérias do ser humano, por nos arrostar com a nossa condição de seres para a morte de forma magistral e sem apelar ao sentimentalismo piegas do leitor. E isso, só António Lobo Antunes o sabe fazer como ninguém, porque António Lobo Antunes é daquela raça de escritores que não admitem meio-termo: ou se amam, ou se detestam. No meu caso, só posso dizer: «um caso de puro, autêntico amor e admiração».


por Olga Fonseca
(e-mail de 28.12.2016)

[texto revisto por José Alexandre Ramos]

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