Diário de Notícias, «Estou na recta final»
Diário de Notícias
05.12.2015
Entrevista de João Céu e Silva
«Estou na recta final»
Esta é uma entrevista de quem nada tem a perder. Do maior escritor de língua portuguesa vivo, que gosta de Putin mas despreza tanto os políticos saloios como a opinião da crítica portuguesa, e recusa ser vaidade o que sente pela própria obra. Que detesta quem lhe tenta morder as canelas por causa de uma entrevista ao El País, onde deitava abaixo Fernando Pessoa. E que não encontra concorrência entre os autores que têm aparecido na nossa literatura.
O mais recente romance de António Lobo Antunes marca o regresso a
um dos pontos mais altos da sua narrativa que iniciou, em 1979, com o romance Memória de Elefante. Quase que
se poderia caracterizar o registo deste livro como um romance policial - com a
devida distância, claro -, tal é o modo como o argumento e as personagens se
desenvolvem num cenário em que cada capítulo acrescenta mais uns pós à
história, obrigando o leitor a avançar para saber o que se está a passar.
E de que trata o romance? Uma pergunta nem sempre fácil de
responder, apesar de o autor achar que a sua narrativa é transparente e, ao
mesmo tempo, garanta: "Nunca penso na história do livro." É sabido
que António Lobo Antunes não aceita que se inscrevam os seus romances no
formato típico da literatura - um protagonista e uma acção com contornos
definidos. Mas, queira ou não, este é um romance em que o leitor antuniano que
se tornou preguiçoso - o que diz "eu gosto é das crónicas dele" -
volta a sentir-se desafiado na leitura de quase 600 páginas. Uma coisa é certa,
há neste um paralelo com a dimensão monumental de Fado Alexandrino, de 1983.
Da Natureza Dos Deuses é também diferente porque introduz e
aprofunda algumas das técnicas de escrita que Lobo Antunes tem vindo a
apresentar nos últimos trabalhos. A ser questionado, foge desse tema dizendo:
"Para mim, o livro está acabado há dois anos. Depois disso já fiz mais um, A Última Porta Antes Da Noite,
e agora estou a escrever outro." Prefere divergir e conversar sobre a má
época que a literatura atravessa: "É um momento muito complicado, em que
ninguém compra livros. Pelo menos no estrangeiro as editoras queixam-se."
Curiosamente, a tradução holandesa de Caminho
Como Uma Casa Em Chamas já
está na quinta edição. Contrapõe a situação nacional: "Cá em Portugal as
livrarias estão vazias, porquê?" Ensaia a resposta: "Mesmo aquelas
pessoas que escrevem livros e que vendem muito estão com vendas muito menores.
Até parece que é o princípio do fim e que chega a hora de novos nomes neste
tipo de livros. Não cito nomes portugueses, mas o leitor acaba por ter razão
quando dá uma vida curta a certos livros. Quem lê o Dan Brown ou a Profecia Celestina agora?" A conversa que se segue
está reproduzida no tom em que aconteceu. Sem grandes alterações no registo.
Este seu novo romance vai vender?
Não pensei nisso, tanto assim que ainda não dei nenhuma entrevista
e por mim nem falava mais.
Este não é um livro habitual...
O que é que uma pessoa pode dizer de um livro? O que podia dizer
está escrito no livro. Esperava que nenhum romance fosse habitual, gostava que
fosse uma surpresa para mim e para os leitores.
Enquanto o lia lembrei-me do seu pai reclamar sobre os seus livros
e achar que só tinha feito um, o Fado
Alexandrino.
Antes de escrever o Fado
Alexandrino ele dizia isso...
Este é mais ou menos um livro do mesmo tamanho, que no plano inicial tinha 40
capítulos e acabou com 37. Tirei três da última parte. Tenho sempre um plano
muito vago e depois não sei o que vou escrever. Não faço a menor ideia do que
vai acontecer neste que estou a escrever.
Se o seu pai lesse este livro diria que era um escritor?
Acho que a resposta dele era afectiva. Ficou muito surpreendido
com Memória de Elefante,
que lhe ofereci, tendo-me dito: "Isto é um livro de principiante."
Pensei nunca mais lhe oferecer nenhum porque fiquei muito ofendido. Tinha 36
anos. Creio que já não lhe dei os outros, mas sei que os leu porque o disse aos
meus irmãos. Sobre o Fado
Alexandrino também não foi a
mim que disse alguma coisa. Ele queria que eu fizesse um romance com a amplidão
que estava na cabeça dele enquanto leitor. Ele tinha uma segunda edição de Mort à Crédit, de
Louis-Ferdinand Céline, e passou-me aquilo para as mãos. E os livros do Céline
eram grossos! Foi uma revelação ler aquilo.
Memória de Elefante ainda vende!
Vai em 30 e tal edições. No outro dia vi uma edição de um deles
que estava na 17ª. São long
sellers.
Mas era um livro de principiante?
É, na medida em que foi o primeiro livro que publiquei.
Que já tinha um registo próprio.
Nunca tinha publicado e um dia aquilo veio. Nunca li um livro meu
e há uns anos saiu uma edição de bolso e, como tinha que almoçar sozinho,
levei-a e pus-me a folhear aquilo. E fiquei pasmado! Claro que já não escrevo
assim, nem deveria ter escrito assim, mas fiquei espantado com a força que
aquilo tinha. E pensei: se fosse editor publicava isto? Sim, porque tenho a
certeza do que este gajo pode vir a fazer. O rapaz que escreveu isto. Não pelo
livro em si, mas porque está cheio de força, mesmo que ainda mal dominada. Tem
um punch do caraças. O livro andou por aí a
passear e ninguém queria aquilo, depois saiu e foi o que se sabe. É natural a
surpresa porque as pessoas a seguir ao 25 de Abril estavam à espera das
obras-primas guardadas nas gavetas por causa da ditadura e não apareceu nada. A
primeira pedrada é em 1977 com o Dinis Machado e O Que Diz Molero. Que é um
belíssimo livro. Os de antes continuaram a escrever como até então - ser
escritor nessa altura devia ser terrível - e não foram capazes de se libertar.
O leitor não aderia, não se vendiam muitos livros. Talvez o Fernando Namora, e
olhe como ele desapareceu. Não sei se é injusto referir, mas quem é que lê o
Vergílio Ferreira e esses escritores todos, que são tantos?
Não se sente um pouco abandonado e só na sua geração?
Ainda há muitos. A Lídia Jorge, João de Melo, Mário de Carvalho, a
Teolinda Gersão... O problema é que um bom escritor é uma coisa muito rara e
agora não os há. Três ou quatro no máximo no mundo inteiro. Não estava a pensar
em Portugal, onde nas gerações mais recentes não há nenhum que entusiasme
especialmente. Até porque estão muito abandonados e os editores não fazem o seu
trabalho.
Aceita opiniões da sua editora?
Isso nunca se passou. Aceito as opiniões todas, mas depois faço o
que me apetece. Muitas vezes até pode ser que as pessoas tenham razão.
Não se tem dado mal com isso?
Não, só sei que nunca foi dessa maneira. Julgo ter consciência do
que valho e do que estou a fazer. Posso estar enganado. Faço uma primeira
versão à mão, depois corrijo para outras folhas com dez correcções em cima, dou
para dactilografar e volto novamente às revisões. Portanto, o livro é muito
trabalhado.
Este será o próximo [uma pilha de folhas próxima]?
Será, se valer a pena.
Era capaz de pôr de lado um livro depois de estar pronto?
Claro. O problema é sempre o reescrever e corrigir. É como dizia
aquele meu amigo, de quem tenho muitas saudades, o Eugénio de Andrade. Tem um
livro que se chama Ofício de
Paciência... Ele era muito lento a escrever e a poesia dele era muito
trabalhada. Não interessa se era bom ou mau, o homem suava sangue para fazer
uma linha. Nem o imagino de outra maneira. Basta ver os manuscritos de Tolstói,
onde não há uma página sem ter correcções. Estive com um manuscrito do Cortázar
na mão e está cheio de correcções. Aquilo parece que é feito como quem mija.
Neste livro usa novas técnicas. Há palavras cortadas a meio...
Isso já havia nos outros...
Mas neste é mais intenso.
Sim, há uns cogitus
interruptus... Estava a tentar experimentar uma nova técnica, a ver se dava
ou não, porque juntei isto das palavras cortadas a outras coisas. A técnica da
escrita interessa-me cada vez mais. Na altura, quando entreguei o livro,
pareceu-me que estava bem, mas como nunca o li não sei. Nunca leio um livro meu
da primeira à última linha, tenho medo, mesmo que agora comece a sentir
curiosidade. Porque, é claro, estou na recta final e é neste momento que temos
de dar tudo.
Na recta final porquê. Não tem mais livros para escrever?
Não faço a menor ideia. Talvez porque nestes últimos dois anos a
minha família tenha sido muito fustigada e morreram-me muitas pessoas. Da família, amigos
muito grandes, como um meu camarada na guerra e o homem mais corajoso que
conheci. As últimas palavras que lhe ouvi foram: "Amo-te, meu
querido." A morte dele custou-me horrivelmente. E morreu também um
soldado, a quem lhe aconteceu esta história quando estávamos em Marimba, na
Baixa do Cassange: a população vinha até ao arame farpado pedir comida em latas
velhas e enferrujadas e havia um miúdo de 5 anos que também aparecia. O José
Mendes tinha pena do menino e metia-lhe comida na lata. Há relativamente pouco
tempo, o menino apareceu-lhe em Lisboa, agora um homem muito rico que vive
entre Angola e Portugal. É extraordinário como aquela criança andou 40 anos à
procura de um rapaz de 20 anos que lhe dava de comer. Nunca o esqueceu.
No seu caso, está de boa saúde?
O Tolstói, a certa altura, escreve: "Lutei comigo para ser
melhor do que o Shakespeare.E depois? Ser melhor que o Moliére. E depois?"
Eu sei que esta obra vai ficar, Os Cus de
Judas vão existir por milhares de anos. A obra fica e eu não serei nada.
Por que carga de água a obra vai sobreviver e eu vou morrer? Ninguém está
preparado para morrer, mesmo sabendo que está próximo. Nunca vi ninguém preparado
para morrer, é uma surpresa e uma injustiça. Então, de que me serve? Já reparou
que cada vez me vêem menos, que não apareço nos jornais e nada digo. Porque não
tenho importância, mas os livros poderão ter independentemente do autor.
Sabemos lá quem ele era!
Não é por mau feitio ou impaciência que não quer aparecer?
Não tenho muita coisa para dizer. Nos livros nem digo nada. Acho
que escrevemos livros porque se sofre. E os intervalos entre os livros é um
sofrimento ainda maior. Mas à medida que o tempo passa existem muitas coisas
que começam a ser claras e a pessoa despe-se da vaidade. Não tenho dúvida em
dizer que ninguém escreve como eu, mas não sou eu, é o António Lobo Antunes,
que é uma pessoa que ninguém sabe quem é. Porque o eu é um menino assustado,
muitas vezes com medo e por vezes perdido. A medicina ensinou-me que em
qualquer idade que o homem esteja, quando está doente ou não, quer a mãe. A mãe
vai salvá-lo, só a mãe. A minha mãe morreu há pouco mais de um ano e, no
outro dia, estava a escrever sozinho e de repente saiu-me da boca alto e em voz
forte "Quero a minha mãe". É extraordinário como depois da morte as
pessoas que criticávamos tanto e de quem achávamos que gostávamos pouco ficam
diferentes. Temos saudades. Às vezes parece que sinto o cheiro dela. A sua
presença. Mas não está cá, como tive a impressão de que ela nunca estivera a
vida toda comigo. E vem o remorso, porque somos muito injustos e ingratos com
pessoas que nos deram muita coisa. Só o compreendemos quando é tarde demais. Há
uma frase do Joseph Conrad, no Coração
das Trevas, em que deveríamos pensar mais: "Tudo o que a vida nos pode
dar é um certo conhecimento dela, que chega sempre tarde demais." Agora
podia dizer "tenho muitas saudade de si, mãe, amo-a". Coisa que nunca
fui capaz de lhe dizer antes. Vejo agora o que devo aos meus pais. A criarem
aqueles filhos todos, a preocuparem-se que lessem e comessem. Havia pouco
dinheiro. Era a minha mãe quem nos fazia a roupa, adaptava as dos meus tios. O
meu pai ganhava pouco, estava sempre com o olho no microscópio e não era capaz
de cobrar dinheiro aos doentes. Na altura eu não reparava. Fui egoísta, vaidoso
nunca fui. O que é que deixo? Papel e palavras, é o que vai ficar de mim.
A sua mãe preocupava-se que acabasse a vender Bordas d'Água e pensos rápidos nas esplanadas...
Sim, queria que eu tivesse uma profissão em vez de inventar
histórias e escrever versos. Não sei se ela conhecia escritores... Conheceu o
professor Bento de Jesus Caraça em miúda e ficou maravilhada. Infelizmente, não
tive na infância pessoas miraculosas - só mais tarde. Sentia-me sozinho, como o
meu pai se sentia, sempre só. E os filhos herdaram um pouco disso.
Também não força a sua solidão?
Quando estou a escrever não tenho tempo. Isto come tudo. A
sensação que sempre tive é que me tinham dado uma coisa que não me pertencia,
esta coisa de escrever, e tinha a obrigação de a devolver em forma de livros.
Era emprestada e a qualquer momento podiam tirá-la. Tenho de forçar quando não
aparece nada e esperar que as coisas venham. Acabam sempre por vir. Ao mesmo
tempo tive muita sorte porque quando toda a gente me atacava aqui em Portugal -
o que não me interessa nada - os livros eram um sucesso. Logo que o primeiro livro
saiu, um senhor que não conheço chamado Vasco Pulido Valente escreveu assim:
"Um livro de um desconhecido publicado por uma editora desconhecida."
ou "O herói romântico dos anos 70". Contra o Memória de Elefante foi logo pancadaria e bofetada de
meia-noite. Era só uma história e essa animosidade levou vários livros. Percebo
porquê: inveja. Ninguém sofre tanto como um invejoso com os sucessos do objecto
da inveja. Eu era mais bonito, tinha mais talento, as mulheres andavam atrás de
mim em quantidade que não acabava - sempre as tive, para que é que havemos de
esconder isto? -, e três meses depois daquele sucesso louco sai Os Cus de Judas e aumentou ainda mais. Por mais que
tentemos esconder no mais fundo de nós, a sensação de derrota dos outros é a
nossa vitória.
Também sentiu isso em relação aos seus colegas escritores?
Não senti, porque sabia desde o princípio que era o melhor. Isto
era evidente: eu era o melhor. E se não o era então, iria ser se me dessem mais
livros e espaço. Não tinha motivo para ter ciúmes de ninguém, pois se
escrevesse faria melhor. Isto dito assim parece um exercício de vaidade mas não
é, até porque vou morrer. Não sei quando, mesmo que já tivesse tido a morte
muito perto e continuasse a querer escrever. A seguir à primeira operação,
garanto, a vaidade foi-se toda. Depois, há dois anos e tal, tive um cancro em
cada pulmão e um tinha um prognóstico fodido, mas estou aqui e bem. Tive muita
sorte. A quimio é um coice enorme, mas as pessoas com quem me encontrava lá
ainda ficavam mais bonitas quando tiravam a cabeleira postiça.
Neste livro nota-se muita crueza...
Em que sentido?
O de ser um livro cruel...
Cruel implica um desejo de fazer sofrer as outras pessoas e não
queria fazer sofrer ninguém.
Há personagens que o fazem...
Ficamos melhor quando passamos pela provação do sofrimento. Mais
tolerantes. É evidente que este livro tinha uma ideia de partida que não pude
concretizar.
Porquê?
Por razões que não têm que ver com literatura. Adorava poder
agarrar em certas pessoas que existiram e existem e escrever sobre elas uma
coisa absolutamente demolidora, mas não o posso fazer porque iria magoar
pessoas - sobretudo uma que me é muito próxima. Não o posso fazer, mas aquele
material daria um romance extraordinário. Tenho muita pena, mas não quero
magoar pessoas de quem gosto.
Não quer ser cruel?
Não quero magoar. É claro que me agradaria escrever um livro com
estas pessoas... E não me seria difícil. Ou, por exemplo, um livro sobre
políticos. Também não seria difícil, mas são tão reles que me enojam. Tinha de
tomar banho após escrever. Não consigo conceber uma pessoa que toma decisões
irrevogáveis e que não as cumpre. Isto é um exemplo. Podia multiplicá-los.
Agora tem um novo governo...
Claro que estou mais contente, já estava farto de mentiras e de
mediocridade de quem nem português sabe falar. Isto é um grande pecado. Os meus
avôs era os dois de direita feroz, salazaristas e monárquicos, no entanto eram
as pessoas mais doces, democratas e tolerantes que encontrei. Quando estava com
o George Steiner em Cambridge, lembro-me de ele dizer: "Nenhum dos bons
alunos daqui vai para a política." Realmente, quem está agora na política
é medíocre. Todos, não importa se são de direita, centro ou esquerda.
Compare-se este François Hollande ou Mariano Rajoy com Olaf Palm, Willy Brandt,
De Gaulle ou Churchill... No meio disto, a senhora Merkel é um génio. E nós
levamos lá uns saloios, no sentido antigo da palavra porque saloio sou eu que
venho de Benfica. Não é no sentido social mas mental. O que Eça de Queiroz
diria desta gente, ou o Herculano? Discursos, ideias e personalidades
miseráveis.
Sente-se mais um escritor do mundo do que de Portugal?
Eu sou português, é para eles que escrevo. Nunca imaginei que me
iriam alguma vez traduzir. E com estes prémios todos, até na China. Agora foram
cinco livros para os Estados Unidos. Está por todo o lado. Na Suécia, há duas
editoras a publicar-me. É muito estranho isto que se passa comigo! Foi lento,
depois aquela explosão em França, com os teatros a darem durante seis meses
António Lobo Antunes. Logo eles que são tão chauvinistas, que nos consideram um
povo de mulheres-a-dias. Fiz mais por Portugal do que estes políticos juntos,
pus a bandeira nos mastros das principais capitais da Europa. Vaidade não é,
trata-se do que aconteceu. Da Áustria a Isarael, e com o meu nome vem Portugal.
Eu pouco interesso, é o país. Ainda hoje dava a vida pelo meu país - não na guerra
de África, onde não tínhamos razão nenhuma -, mas se houvesse uma como a
Primeira Guerra Mundial. É o meu país, deu-me tanto, gosto tanto dele. Não é o
Portugalzinho do meu amor! Ou o daquela quantidade de parvos que se entretém a
escrever sobre mim. No El País disse que não era possível ser bom
escritor sem se ter fodido. É o que penso, mas não daquela maneira, nem naquele
contexto. Tudo quanto é cachorro vadio andou a tentar morder-me as canelas. Vão
para a puta que os pariu. Porque têm de saltar muito alto para chegar aos meus
pés. É evidente que aquilo era dito num determinado contexto e sentido. Fui
logo avacalhado. Parece que há pessoas que não suportam o talento dos outros
quando deveriam era ficar contentes. Eu só não fico contente quando o Sporting
ganha, porque prefiro que seja o Benfica.
Não reconhece valor a Pessoa?
Não gosto e sou capaz de fundamentar, mas não me parece importante
falar disso. Continuem a morder-me, é-me indiferente. Insultaram-me e não
respondi a nada. Podem ladrar à vontade. A mim não me ouvem dizer mal de
ninguém.
Quando publica um livro e lê as críticas não se irrita com a
recepção nesse "Portugalzinho"?
Não, não sei como é por cá porque não as leio. Há países onde não
tenho críticas, são mais adjectivos, e também não as leio.
Qual é a língua em que mais estranhou que o quisessem ler?
A Etiópia e o Irão surpreenderam-me. Agora sou viral, como dizem
os parvos! Há certos países e pessoas que funcionam como referências, e se eles
falam é-se replicado por todo o lado. Nos Estados Unidos é O Harold Bloom, em
Inglaterra o Steiner. Opiniões decisivas.
Porque não participa nos muitos festivais literários em Portugal?
Não vou porque falta tempo. Agora recusei um convite para Buenos
Aires. Tantas horas de viagem! As viagens são muito compridas e tenho de estar
sempre a responder às mesmas perguntas. E nos jantares ficam a ver como pego
nos talheres. Tenho sempre os olhos em cima!
É o terrorismo que o preocupa?
Nunca pensei nisso. Uma bomba no avião? Nisso não penso, até porque
gosto muito da comida dos aviões. Faz-me voltar à infância! Como vou em
executiva é óptimo porque tem talheres, imensas coisas para abrir e vermos o
que há lá dentro. Gosto muito de andar de avião! Devia haver um restaurante que
servisse comida de avião naquelas bandejas. Tem um lado de brincar aos
jantarinhos que gosto.
Voltemos aos festivais literários em Portugal. Porque não vai?
É a mesma coisa que me faz não ir a Munique agora. E a minha
editora alemã é muito preocupada com as traduções, porque já lá vai o tempo em
que os livros eram traduzidos do francês, como faziam o João Gaspar Simões e a
Isabel da Nóbrega. Podemos ficar com uma ideia do livro, mas é impossível
traduzir Tchekhov! E a língua deles é lindíssima, veja-se como é bonita a
língua russa falada pelo Putin. Aliás, uma das coisas que os russos admiram
nele é o seu russo, o modo como maneja a língua com aquela voz bonita. É quase
impossível traduzir e quanto melhor é um escritor mais simbólica é a sua
língua.
Então, vamos ao simbolismo. Se está tão fechado em casa, como é
que sabe do mundo que aparece em Da
Natureza Dos Deuses?
Viajei bastante até agora e não me fecho ao mundo. Não tenho é
tempo fora dos livros.
Vai buscar muito ao passado?
Sei lá onde vou buscar...
Então, as viagens deste livro não são só do passado?
Ir a Cascais não é uma grande viagem, são 20 minutos. Só se formos
a pé e descalços.
Repito. Porquê um livro tão cruel?
Eu não sou um homem cruel.
Falo das personagens.
Ah são... Vou tentar lembrar-me delas... Sim, algumas são. Há o
homem que fecha a mulher no quarto. É um monstro mas é um desgraçado, um
infeliz que pede ao criado para fazer o filho por ele. É esse, não é? Queria
concentrar nessa figura várias pessoas, 15 ou 20 homens diferentes, que gostava
de ter podido espalhar por outras personagens. Mas isso é um coisa que não
posso fazer. O Thomas Mann pôde escrever Os
Buddenbrook, mas eu não posso. Talvez o faça num livro para ser publicado
depois da morte, sobre pessoas que não quero que sofram com isto. Não farei,
chateia-me escrever um livro e ficar por publicar. Mas haverá alguma coisa de
real nas pessoas e vozes que habitam os livros. Vêm de onde? Ninguém é como
aquela gente, mas há pessoas pelas quais tenho dificuldade em sentir piedade.
Temos a mania de que a inteligência é a maior virtude, mas a bondade é maior. O
meu irmão João diz isso: "O pior defeito que um homem pode ter é a
ingratidão."
As mulheres sofrem muito neste livro. Qual é a razão?
Elas sofrem muito em todos os livros. Sobretudo, na vida. Porque
as coisas mais pesadas caem sobre elas. O tempo tem-me ajudado a respeitar as
mulheres, mesmo que nenhum homem as conheça bem.
É um livro que tem uma particularidade literária: os decotes das
mulheres. Mais ou menos abertos conforme são as personagens!
Os decotes. Não reparei nisso.
Há um broche que fecha a vista...
Não tenho nada contra os decotes. Falo muito em decotes?... Elas
podem ter muitas toiletes, mas isso não lhes compensa a solidão.
Quando elabora as personagens...
... Eu não as elaboro, elas já chegam inteiras.
Então, distrai-se a vesti-las?
Falo muito em roupa? Não me lembro... Não é assim na vida também?
Se é, então não está mal.
Tem mais personagens do que é habitual e dá-lhes nome. É para se
orientar?
Não é nada premeditado, eram muitos e as pessoas podiam
confundi-los. Quanto à escolha dos nomes, é de grande dificuldade. Nas classes
mais altas é assim: o Senhor ou a Senhora. Os empregados é que têm nome. Neste
livro que estou a escrever agora, nenhuma tem nome. É sobre gente muito pobre.
Este, é da burguesia.
A palavra mais repetida neste livro é "puta". Porquê?
Puta? Tem a certeza? E não é sempre a mesma pessoa a dizer isso?
Terá que ver com os habitantes do livro e da maneira como olham para as
mulheres. É uma determinada classe social que as vê como coisas que se utilizam
e deitam fora. Encontrei pessoas assim, todas da mesma classe social. E as
mulheres são objectos, com ambição, que de certa maneira se comportam como
eles. É um livro sobre uma certa camada social, onde as relações homem/mulher
não são como as entendemos, mas muito diferentes.
É uma relação de poder?
O poder que elas têm só existe se forem
provocantes numa forma primitiva, através dos brincos, dos anéis e das roupas.
Esses homens só pensam em cobri-las de joias e não percebem que o empregado é
mais amado do que eles. Este é um livro sobre os senhores do mundo em Portugal.
Eles não obrigam só as mulheres a obedecer, também os homens que estão abaixo
deles, até quando entram para a família são humilhados. É o poder que vem com o
dinheiro. Não é em vão que tem havido tanto escândalo financeiro em Portugal.
Eles dão dinheiro aos partidos antes das eleições mas desprezam as pessoas.
Continua a haver uma oligarquia na sombra que é quem realmente manda. Havia
determinadas pessoas que nos últimos governos tinham lá três/quatro ministros
que lhes pertenciam. Podia ser ministro mas era apenas um empregado. O poder
deles é quase ilimitado e não é exercido frontalmente, chega por trás até quem
de direito. Era empurrado, dava três cambalhotas e caía num ministério. Só
lendo o livro é que se percebe do que estamos a falar. E não vale a pena estar
a empurrar-me para essa questão porque não quero ir mais longe.
05.12.2015
texto de João Céu e Silva
[revisão do texto por José Alexandre Ramos]
Tanto vive em mim o escrito como o vivido,
ResponderEliminaràs vezes sinto que é o mesmo,
mesmo que não o seja.
Sinto-me vivo ao escrever,
escrevo o que vivo
e sei que não vivo enquanto escrevo.
Mas não posso negar o que sinto
e sinto em mim o peso da vida
e o peso de viver escrevendo,
Tão vivo!