«Da Natureza Dos Deuses: uma sopa de letras», por Norberto do Vale Cardoso
António
Lobo Antunes e Da Natureza Dos Deuses:
Uma sopa de letras
Norberto do Vale
Cardoso [i]
Na vasta e complexa
obra de António Lobo Antunes destaca-se a importância do que parece
fragmentário e lateral. Efectivamente, na obra deste autor não podemos ater-nos aos aspectos mais evidentes e
tradicionais da narrativa, porque esta, como um mar imenso, está repleta de
micronarrativas que funcionam como “microclimas” a perscrutar, exigindo ao leitor
uma atenção redobrada. Essas “funduras”, onde tudo se subsume (e de onde tudo
reemerge), funcionam como um “avesso”, noção que pode possuir várias componentes
sémicas. Ora em Da Natureza Dos Deuses
(ND) julgamos importante abordar três
aspectos “submersos” na narrativa: as questões do poder, da paternidade e da
linguagem.
Em Da Natureza Dos Deuses, romance em que, uma vez mais, somos levados
a percorrer os “corredores sombrios” (ND,
p. 346) do poder, confrontamo-nos com uma questão central da identidade,
veiculada através de uma dicotomia entre os “deuses” e os “homens” (vistos como
“palhaços”). O tema não é novo na obra de Lobo Antunes, até porque “o circo […]
é uma imagem catalisadora e sempre actuante nos romances” deste autor (Susana Carvalho,
A Desordem Natural do Olhar, 2014, p.
171), mas interessa-nos particularmente porque Lobo Antunes vem encontrando
outros modos de dizer para dizer também outras coisas.
Assim, os “deuses”
serão representados pelo “senhor doutor” e pelo “senhor presidente” – que se
reúnem em consílio aos domingos -,
enquanto os homens-palhaço se fazem representar, grosso modo, pela figura do sem abrigo (que recorda a personagem de
“As mãos são as folhas dos gestos”, incluída no Quinto Livro de Crónicas).
Poder
e paternidade:
O senhor doutor, dono
do volfrâmio, de empresas, fábricas, casas e carros (ND, p. 217), vê que o seu poder vai aumentando sem freios: “o
senhor doutor comprava quadros aos alemães, cristais, pratas, continuava a
aumentar a casa até ao pinhal, fez recuar as dunas, transformou as ondas em
rochas” (ND, p. 238). Ele é, de
facto, o capital, uma espécie de pai
global. Todavia, não tem o poder da criação,
pois, logo após o casamento, teve conhecimento de que não poderia ser pai. Como
julga que o dinheiro compra tudo, procura médicos nos Estados Unidos, na Suécia
e na Áustria, mas nenhum especialista encontra uma solução (ND, p. 355). Incrédulo, começa a sentir
repulsa pelo seu corpo (ND, p. 355),
e essa perda da paternidade (tema muito reiterado na obra de Lobo Antunes), que
é uma questão de identidade, leva-o a nomear Marçal, o servente, para o substituir: “[…] minha filha que não é
filha de mais ninguém senão minha, mandei o Marçal fazer-ma” (ND, p. 324). Este jogo de substituição eu/
outro, que se coaduna com os motivos circenses, em particular com a dialética
palhaço rico/ palhaço pobre, é relevante na medida em que destaca a
(im)potência do dono de todas as coisas, colocando em causa os alicerces do poder
e da identidade. No fundo, o retirar da máscara deixa à vista a sua
“imperfeição”, a “humanidade sofredora”, o “grotesco” do mundo (in Dicionário da Obra de António Lobo Antunes,
volume II, 2008, p. 131).
Para tentar suprir as
carências efectivas, o sentimento de posse
do “senhor doutor” traduz-se em prepotência para com todos os que o rodeiam.
Vejam-se, a esse propósito: o modo como encarcera a Senhora num quarto, de onde
esta observa o jogo de ténis, que o marido converte em jogo de sedução e
manipulação; a ameaça de desterro do sargento para a província (de Cascais a
Chaves, ND, p. 342); ou a posse
física da secretária do adjunto, que toma para si como quando em miúdo se
agarrava aos animais do carrossel (ND,
pp. 352, 353), outro elemento que conecta a infância (como tempo irremediavelmente
perdido) ao jogo entre ser e não ser. Portanto, o poder e a posse são, na
verdade, substitutos de uma carência, aparentemente resolvida através da menorização
dos outros, sempre vistos como “imbecis” (ND,
p. 353) e “palhaços”.
As mulheres são as
maiores vítimas do poder másculo e patriarcal que o senhor representa: “- Todas
as mulheres são palhaços”, diz-se a determinada altura (ND, p. 76). Tal apodo justifica-se na medida em que o palhaço
representa, a nível simbólico, “o rei assassinado”, “a inversão das
propriedades reais” (Chevalier/Gheerbrant, Dicionário
de Símbolos, 1994, p. 502), que aquele “que manda em Portugal” (ND, p. 486) teme. O espelho invertido
leva-o a olhar os outros com desprezo e a usá-los, ao ponto de estes dependerem
totalmente dele, nem que seja por medo. Veja-se o relato cruel da senhora:
“[…]
o meu marido […] sem olhar para mim, já não tenho pinturas, nem adereços, nem
vestidos, o roupão somente, eu para o meu marido
– De certeza que não me preferias
palhaço?
[…]
– Ainda sou a tua vaca não sou?
eu
– Ainda sou a tua cadela não sou?
eu
–
Ainda sou a tua puta?
eu,
com mais ímpeto
– Ainda sou a tua puta?
enquanto as bolas de ténis para
um lado e para o outro da rede” (ND, pp.
227-228)
Esse domínio traduz-se
num enfastiamento do “senhor doutor”, que usa e substitui as pessoas que o rodeiam, ainda que, na verdade, o
problema esteja em si próprio. Essa alteridade é usada pelo romance de Lobo
Antunes+ para se referir, mutatis mutandis, à condição do artista (e do
escritor em particular):
“[…]
fui o palhaço que me mandaram ser, não fui, fui a tolinha que exigiram de mim,
não fui, ao fim de certo tempo substituem-se
os artistas, não é, o meu marido substituiu os artistas, conserva-me
nesta casa por ele, não por mim, pela sua filha, talvez, reparem que não digo
pela minha filha, digo pela sua filha, talvez, porque aceitei dar-lhe
a filha, fica com ela, entrega-lhe
um marido, tanto faz qual, os palhaços não escolhem o público, uma voz, não
adivinho de quem
– Os artistas são todos
portugueses” (ND, p. 222)
O
artista:
Como referimos, do outro lado encontra-se o
sem abrigo, que, carente de todas as coisas (do emprego à posição social), é
tão-só aquele que caminha, indiferente, junto ao mar de Cascais, como se a
fímbria do mar representasse a margem social em que se encontra. No entanto,
ninguém há de mais misterioso que ele, o que desperta o interesse do senhor
doutor: “por que razão a gente, os deste livro, nos inquietamos com o sem
abrigo, o que será ele, quem será ele, quem somos nós que não nos abandona
nunca” (ND, p. 324). Desapossado, o
sem abrigo, como figura desfigurada, representará o “desfavorecimento de classe
dos artistas e a dureza do trabalho e do esforço exigido no que aparece, aos
olhos do público, como cómico.” (in Dicionário
da Obra de António Lobo Antunes, volume II, 2008, p. 130) Não obstante, se
Marçal é levado ao suicídio (“enforcou-se sem aviso na
estufa”, ND, p. 424) porque é
conduzido a uma dissolução moral pelo dono de todas as coisas, o sem abrigo é
indiferente aos jogos de poder. De certo modo, ele parece ser o antigo contador
de histórias, que emudeceu perante um mundo onde impera o dinheiro e se descura
a experiência do outro (Walter Benjamin, Linguagem,
Tradução e Literatura, 2015, p. 148).
Nesta óptica, no seu
auto-exílio, o sem abrigo liga-se à importância da linguagem, da palavra e da
composição do próprio romance. Sobre esse aspecto destacamos, primeiro, um
lugar (uma livraria), depois, uma personagem (a mãe estrangeira da dona da
livraria, “exprimindo-se num português cheio
de rodas dentadas”, ND, p. 76), e, finalmente,
uma acção. Referimo-nos ao momento em que o “senhor presidente” come a sopa de
letras, que é símbolo da pluralidade e, enquanto tal, da “palavra do enigma”
(Benjamin, ibidem, p. 41). Não é,
aliás, despiciendo que as letras da sopa formem as iniciais “L” e “A”,
significando, de certo modo, a natureza subsumida da criação artística, formada
letra a letra, com paciência. Afinal, o homem não se alimentará exclusivamente
de poder, porque até os que o têm acabam por desejar ter um outro poder, o de
“construir uma palavra”:
“[…]
a governanta, de colher em riste, depois de lhe prender um guardanapo com o
escudo nacional ao pescoço
–
Não é bonito o guardanapo senhor doutor?
lhe
ia dando um caldinho, a apanhar o que escorria dos cantos dos lábios com o bico
da colher e o senhor presidente a chupar o bico, demorando a mastigar
–
Ainda não engoli
os
pedacinhos de frango e as letras da massa, o senhor presidente, satisfeito,
pescando um L e um A da língua
–
Olha um L olha um A
com
vontade de construir uma palavra” (ND,
p. 549)
Deucalião:
Explicação
dos Pássaros, Auto
dos Danados ou As Naus, são
romances onde António Lobo Antunes põe em cena a carnavalização do mundo,
absorvida e usada parodicamente para caracterizar o nosso tempo. Este novo
romance, Da Natureza dos Deuses,
revela-nos o rosto oculto sob a máscara porque estas figuras representam o
“perpétuo desacerto” e a “aparente normalidade” (Carvalho, ibidem, pp. 176 e 180) em que vivemos neste país, um lugar onde não
há homens-deuses, mas onde coexistem homens que vivem vidas muito diversas.
O escritor que se assume (ironicamente) como um
“artista” facilmente substituível ou como um “sem abrigo” à margem do todo, não
será certamente um deus capaz de restabelecer a ordem para o caos em que vivem
os homens. Mas no todo desorganizado que é (qual sopa de letras) o romance, levanta-se
a questão intemporal sobre a utilidade da criação artística, da linguagem e do
romance. Talvez a resposta tenha sido encontrada por Eduardo Lourenço, pelo
menos no que à obra de António Lobo Antunes diz respeito. Num texto intitulado
“Sob o signo de Deucalião” (in Público,
15.11.2003, p. 7), o ensaísta considera que “[…] a ficção de António Lobo
Antunes lembra o gesto de um deus que se tivesse suicidado na sua criação”, mas
sem criar o caos, porque ele se encontra “inteiro em cada um dos fragmentos
dessa longa frase”.
[i]
Norberto do Vale Cardoso é
autor de A Mão-de-Judas: Representações
da Guerra Colonial em António Lobo Antunes (Texto, 2011).
*
*
26.10.2015
Comentários
Enviar um comentário