Sandra Guerreiro Dias: opinião sobre Explicação dos Pássaros
Dos pássaros
Ao anoitecer, a cidade adensa-se e os pássaros quase enlouquecem. Ao mesmo tempo, Rui S. pensa e é no pensamento de si e dos outros que existe enquanto limite da narrativa que por sua vez se dissolve na delirante articulação entre presente e passado, sujeito e contexto, alienação e libertação. Em Explicação dos Pássaros, a opção pela aparente desconexão diegética é, no entanto, inevitável, pela premência da simulação profunda do objecto e dos seus contextos.
Por fragmentação do discurso entender-se-á, em António Lobo Antunes, o silêncio da continuidade narrativa que se manifesta por intermédio da ausência de nexos discursivos longitudinais. Esta falaciosa vacuidade esgota-se, no entanto, numa inquietante coerência experimentada através de um encaixe paradoxalmente sequencial entre diferentes planos temporais, personagens, fórmulas, registos e outras variantes que constituem o universo no qual se movimenta a personagem principal. Ou o rodopio da insistência obsessiva na descrição dos pormenores, da lucidez desarmante e da coloquialidade poética, da simultaneidade entre as vozes do narrador e da personagem principal, da família, das mulheres, da sociedade, da cidade e dos pássaros, espécie de alter-ego no qual Rui S. se supera e se explica a si próprio e através dos outros:
A maior parte dos pássaros, explicou o pai, (…) vivem muito pouco tempo se não morrem logo à nascença, há os que emigram no Inverno para países mais quentes, os que não conseguem executar a viagem e se ficam no caminho, os que os machos e as corujas devoram se os pilham atrasados ao entardecer, retardatários, a tentar escapar à noite a caminho da mata. (pp. 72-73)
À fictícia desordem enunciativa acumulam-se depois as rupturas inegociáveis, os conflitos, que impõem, argumentam, fundamentam e intensificam o caos do percurso em causa, e que farão de Rui S., esse pássaro «retardatário a tentar escapar à noite». Entre os muitos conflitos, conta-se o decisivo e insuportável confronto ideológico com o pai, figura tutelar que ditará claramente a despersonalização do sujeito relativamente a si e à sociedade, a deliberada submissão aos afectos e à manipulação feminina, através sobretudo das mulheres com que se envolve, Tucha e Marília, e a impiedosa deriva decorrente da inevitável dissolução do seu projecto de vida enquanto ser social que se auto-anula:
Deixei definitivamente de ser pássaro, ancorei no lodo e na lama de Aveiro como os botes sem préstimo, reduzidos ao esqueleto das travessas, comidos pelos mexilhões e pelas lulas. Pensou Não me apetece sair mais daqui, mover o mindinho sequer, sentir a pressa de vaivém do sangue nos meus membros, o galope aflito das veias. (p.125)
Todos estes conflitos não serão, no entanto, mais do que enraizadas sequelas de uma desintegração accionada por uma sociedade em busca de si mesma, e da qual Rui S. faz parte. A apenas insinuada mas intentada análise que da cidade e do contexto do romance vai sendo feita assume-se, neste âmbito, enquanto esforço de reflexão crítica acerca do que foi a sociedade portuguesa do pós-Abril:
Aveiro vogaria eternamente na neblina à laia de um navio desgovernado, com as suas travessas desconexas, as suas sucursais de banco, as suas pastelarias remotas e os seus largos vazios, (…). Lá está o carro imóvel contra um plátano e como que preso ao tronco por uma arreata invisível, o relógio de uma igreja qualquer soou uma incrível infinidade de badaladas compassadas e lentas, o som alargava-se, medieval, em círculos concêntricos na atmosfera saturada. (p.137)
Dispersas mas catalisadoras da narrativa, as descrições, ora da cidade de Lisboa, ora de Aveiro, produzem, além disso, um abrandamento do fulgor narrativo que se traduzirá num esboço desta mesma sociedade enquanto argumento e origem da desagregação dos intervenientes:
Campo de Ourique habita-me irremediavelmente os ossos, acho que não seria capaz de morar longe destes quarteirões mornos e sem graça, desta triste prisão de fachadas desigualmente idênticas, construídas na pasta sem grandeza de um cenário de melancolias resignadas. (p.29)
Este devir quase paralelo das sucessivas rupturas explicará e antecipará esse acto final de libertação que é o suicídio da personagem principal. Afinal, apesar da desagregação sistemática, remanesce uma lógica possível que se detém para além das expectativas e que é a da fragmentação do sujeito, pelo que a morte de Rui S. mais não será que a manifestação última desse exercício de coerência que a personagem ensaia desesperadamente ao longo de todo o romance. Além disso, a opção pela morte do artista em palco, através da alegórica encenação de um improvável número de circo, contém em si a denúncia de toda uma sociedade que assiste imperturbável ao seu auto-aniquilamento:
Senhoras e senhores, meninas e meninos, respeitável assistência, eis-nos prestes a alcançar o momento culminante do nosso espectáculo de hoje - urrou ele dando cambalhotas veementes ao redor da pista. - O Grande Circo Monumental Garibaldi oferece-vos ao vivo o número único, não televisionado, do suicídio do seu principal artista. (p.210)
Mais do que o suicídio em si e do que dele é possível deduzir relativamente à personagem central do romance, a morte como espectáculo grotesco, assistido e aplaudido pelos próprios familiares e amigos da vítima, afirmar-se-á afinal como encenação violenta, não da renúncia de Rui S., mas da complexa melancolia e social. Para isso, interagem, por um lado, as figuras absurdas do circo, a sociedade e os seus duvidosos mecanismos de dissuasão, e a letárgica família, e por outro, os pássaros, o cego e Rui S., subsistindo apenas o ruído e o silêncio, ambos impenetráveis, ou a valsa silenciosa que se sobrepõe à algazarra do circo, enquanto Rui S. se suicida e se liberta, emancipando-se pela imaginação de si, por si:
Estou a adormecer, pensou ele, distinguia ainda, à medida que mergulhava num lago de lodo, cheio de silhuetas conhecidas, a testa franzida, aflita, do pai, cheguei-me a ti, puxei-te pelo ombro, Palavra de honra que a família acabou, palavra de honra que a Lapa acabou, nunca mais entramos sequer o portão daquela casa, e na claridade imprecisa de Lisboa, na claridade nevoenta de Aveiro, os teus olhos afiguraram-se-me tão tragicamente ocos de expressão como as órbitas de gesso dos defuntos. (p.140)
Da imaginação pode dizer-se ainda que se processa aqui enquanto acto instável de destruição e construção relativamente aos objectos evocados - a infância, os diálogos sem retorno sempre introduzidos pela fórmula imperativa “pensa:…”, repetida até à exaustão, e os pássaros -, espécie de metáfora da sua existência indecifrável. Dela e dos pássaros, a explicação possível será somente a sempre provável incerteza.
António Lobo Antunes (1981), Explicação dos Pássaros. Lisboa: Dom Quixote. 257 pp. [ISBN: 972-20-2712-3]
Sandra Guerreiro Dias
29.03.2008
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