Nuno Barbosa: Comentário a Os Cus de Judas
"a dolorosa aprendizagem da agonia" - assim classifica Lobo Antunes a guerra de Angola, fracção da guerra colonial portuguesa; assim se resume o processo a que é submetido o leitor na descoberta daquele que é o segundo livro do autor.
Encontramo-nos perante um testemunho. Ao evoluirmos gradualmente na sua leitura vamos desmontando a guerra do ultramar, sendo guiados através dos 27 meses que o narrador se encontrou ao serviço da pátria portuguesa.
Partindo do relato do narrador, das experiências a que foi sujeito e da forma como as interpreta e com elas lida, traça-se um percurso que desemboca inevitavelmente na conclusão/admissão do "gigantesco, inacreditável absurdo da guerra".
Delineia-se um retrato demasiado bruto e verdadeiro para se poder falar de uma caricatura. A seriedade e crueldade da narrativa fazem surgir o livro mais como que uma denúncia. Ou antes: é deste modo apresentada uma visão da realidade, uma posição sobre os factos, uma voz silenciada que entra em erupção e vem contar a sua versão.
Atente-se que a "interlocutora" do extenso monólogo do narrador encarna qualquer um que leia a obra: escuta-o (ou pelo menos ouve) e intervém como o leitor o faria, para no fim fechar a porta e o abandonar, como nós fechamos o livro e o esquecemos numa prateleira - todos constituímos acidentais pretextos para uma pontual exposição.
Decadência, putrefacção, pestilência, morte. Adicionando canalhice, violência e absurdidade poder-se-ia reunir as palavras-chave basilares de tal exposição. É todo um cheiro a merda que emana da e subsiste após a leitura.
O autor, de resto, dando plena expressão à frontalidade da sua "escrita impúdica e grosseira", (...), consegue uma harmonia preciosa entre a violência do narrado e a rudeza dos termos empregues - as suas palavras ganham, portanto, uma credibilidade muito maior "fidelizando-se" à realidade.
Depararemos, pois, com uma linguagem incisiva e cortante que nos retratará:
- um Estado Novo definhado que, não conseguindo salvar-se, exporta a imundície e a enraíza em África, símbolo do poder secular de uma pátria que tem orgulho na sua história ("As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo.");
- um povo incapaz de se revoltar morrendo longe de casa lutando contra si próprio, a guerra e só depois os "cabrões", sacos de boxe expiatórios de todo o processo;
- uma Angola seca, desolada e decrépita (os cus de judas, nem mais);
- uma guerra idiota e/porque despropositada, excessiva e bestial;
- um narrador totalmente enjoado/enojado com feridas a latejarem bem para lá de 74.
A situação presente do narrador não deve nunca, atenção!, ser encarada como mero suporte de evocação do passado. Lobo Antunes parece querer frisar bem uma continuidade do tempo que modela o agora em função do outrora e fá-lo através deste "narrador-cobaia" e da maneira como toda a sua vida se parece ter definido, e definir ainda, pela "participação" numa guerra, na guerra - "Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão melancólico a quem não se telefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher a dias acabará por encontrar sentado na cadeira de baloiço em camisola interior, de boca aberta, roçando os dedos roxos no pêlo cor-de-novembro da alcatifa."
É, afinal, este o propósito deste livro: fazer atentar na marca, na marca indelével com que a guerra manchou e assombrou alguém, e alguém em quem tantos se podem rever; lembrar sempre, para não repetir, a canalhice do português, como (de novo) "O branco veio com um chicote e bateu no soba e no povo".
Encontramo-nos perante um testemunho. Ao evoluirmos gradualmente na sua leitura vamos desmontando a guerra do ultramar, sendo guiados através dos 27 meses que o narrador se encontrou ao serviço da pátria portuguesa.
Partindo do relato do narrador, das experiências a que foi sujeito e da forma como as interpreta e com elas lida, traça-se um percurso que desemboca inevitavelmente na conclusão/admissão do "gigantesco, inacreditável absurdo da guerra".
Delineia-se um retrato demasiado bruto e verdadeiro para se poder falar de uma caricatura. A seriedade e crueldade da narrativa fazem surgir o livro mais como que uma denúncia. Ou antes: é deste modo apresentada uma visão da realidade, uma posição sobre os factos, uma voz silenciada que entra em erupção e vem contar a sua versão.
Atente-se que a "interlocutora" do extenso monólogo do narrador encarna qualquer um que leia a obra: escuta-o (ou pelo menos ouve) e intervém como o leitor o faria, para no fim fechar a porta e o abandonar, como nós fechamos o livro e o esquecemos numa prateleira - todos constituímos acidentais pretextos para uma pontual exposição.
Decadência, putrefacção, pestilência, morte. Adicionando canalhice, violência e absurdidade poder-se-ia reunir as palavras-chave basilares de tal exposição. É todo um cheiro a merda que emana da e subsiste após a leitura.
O autor, de resto, dando plena expressão à frontalidade da sua "escrita impúdica e grosseira", (...), consegue uma harmonia preciosa entre a violência do narrado e a rudeza dos termos empregues - as suas palavras ganham, portanto, uma credibilidade muito maior "fidelizando-se" à realidade.
Depararemos, pois, com uma linguagem incisiva e cortante que nos retratará:
- um Estado Novo definhado que, não conseguindo salvar-se, exporta a imundície e a enraíza em África, símbolo do poder secular de uma pátria que tem orgulho na sua história ("As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo.");
- um povo incapaz de se revoltar morrendo longe de casa lutando contra si próprio, a guerra e só depois os "cabrões", sacos de boxe expiatórios de todo o processo;
- uma Angola seca, desolada e decrépita (os cus de judas, nem mais);
- uma guerra idiota e/porque despropositada, excessiva e bestial;
- um narrador totalmente enjoado/enojado com feridas a latejarem bem para lá de 74.
A situação presente do narrador não deve nunca, atenção!, ser encarada como mero suporte de evocação do passado. Lobo Antunes parece querer frisar bem uma continuidade do tempo que modela o agora em função do outrora e fá-lo através deste "narrador-cobaia" e da maneira como toda a sua vida se parece ter definido, e definir ainda, pela "participação" numa guerra, na guerra - "Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão melancólico a quem não se telefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher a dias acabará por encontrar sentado na cadeira de baloiço em camisola interior, de boca aberta, roçando os dedos roxos no pêlo cor-de-novembro da alcatifa."
É, afinal, este o propósito deste livro: fazer atentar na marca, na marca indelével com que a guerra manchou e assombrou alguém, e alguém em quem tantos se podem rever; lembrar sempre, para não repetir, a canalhice do português, como (de novo) "O branco veio com um chicote e bateu no soba e no povo".
por Nuno Barbosa
citado daqui
[não datado]
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