Luis Malagrida: «A Lisboa de António Lobo Antunes»


«Nada a não ser de vez em quando um arrepio nas árvores e cada folha uma boca numa linguagem sem relação com as demais, no início cerimoniosas, hesitavam, pediam permissão, e depois palavras destinadas a ela e das quais se recusava a entender o sentido, quantos anos faz que me atormentam, não tenho que lhes dar explicações, soltem-me, isso de menina, em Africa, e depois em Lisboa, a mãe aproximava-se ao móvel da cozinha...»

Início de Comissão das Lágrimas. António Lobo Antunes (ALA) alguma vez expressou em entrevistas... o que ouviu um dia em [hospital Miguel] Bombarda “o mundo ao contrário”. Aqui, neste início, efectua-se um feito poético: nada, árvore, folha, boca... Linguagem, e isso de uma intensidade maiúscula, liga-se muito directamente com tormento, negação, menina, África e mãe; uma dor... no entanto, não tenho dúvida do nexo de conteúdo do primeiro ao segundo. Alguns poderão dizer que é um recurso?, (que também aparece em Ontem Não Te Vi em Babilónia), algo útil, localmente?

Pessoalmente não o creio, porque a técnica, ou utensílio, ou o embutido de forma artificial sempre deixará traços, enquanto aqui a naturalidade é imediata e unifica heterogéneos sem que se possa objectar um erro lógico. Constitui a essência da obra de ALA, que talvez possamos analisar com toda a precaução, porque o próprio contexto artístico não se presta a rebuscar um conteúdo analítico que impomos a priori. Embora, precisamente, também um silêncio não seria perceptivo... Sempre em literatura... as coisas podem observar-se como incompletas... desde que não se tente no sentido de completar nada, mas simplesmente de “doxa”.

O subscritor não é profissional da literatura... apenas um simples leitor; ALA é um íman... desde as primeiras leituras, já distantes, ocorreram as releituras, e aqui aparece um interesse indirecto na Lisboa de ALA, isto é, Benfica, o bairro que o viu nascer, e da sua juventude; surgiu um interesse crescente em localizar cada referência, no possível, primeiramente através do Google e depois através de diversos blogs de Benfica e da Lisboa antiga. ALA teve presente o seu bairro em três livros: Tratado Das Paixões Da Alma, A Ordem Natural Das Coisas e A Morte de Carlos Gardel, entre 1990-1994. Também em Elogio do subúrbio no (primeiro) Livro de Crónicas, e A gente os dois no Segundo Livro de Crónicas. Talvez com maior intensidade em A Ordem Natural Das Coisas, embora R. Gomes Pereira, Grão Vasco, Emília das Neves, Ernesto da Silva e Calçada do Tojal apareçam nesses três livros, chamados trilogia de Benfica, é neste livro onde a acção se situa explicitamente: onde a família Valadas tem a mansão C. do Tojal, enquanto que o seu avô paterno teve uma mansão na Estrada de Benfica até 1973, à altura de calçados Guimarães, que ainda perdura, perto de Villa Ana e Villa Ventura, que foram restauradas; são as únicas. Todos os demais chalés e mansões desapareceram. ALA descreve a sua escola primária em Gomes Pereira, mesmo por cima da antiga Fábrica de Tecidos... onde a criada em A Morte de Carlos Gardel procura e procura a casa onde trabalhou toda a sua vida... Já desaparecida... por ali... dando voltas... olhando, buscando, o que já não existe... Com saudade? Talvez, mas o termo fica curto... porque representa a máxima plenitude em vigor, em projectos, em futuro naquela época dos anos 50-60, quando ALA se licencia em medicina e partirá depois para Angola, enquanto João Lobo Antunes para Nova Iorque; não se pode denominar nostalgia à afirmação literária de um tempo passado. Para ALA, a literatura não é realidade... mas sim um substrato... como escreve em Cartas da Guerra... Além disso, se em certos momentos o passado se acentua, também o presente e o futuro podem acentuar-se ou anular-se... como ocorre em A Ordem Natural das Coisas e depois. Uma espécie de anulação do presente, um Aion para o filósofo francês G. Deleuze.

Benfica mudou muito rapidamente, desaparecendo rebanhos de cordeiros (embora tenham perdurado para além do tangível) e os enxames de abelhas... que “escureciam o sol”. Já nos anos 40 começou a edificação imparável... É de anotar que alguns engenheiros ou arquitectos urbanistas tentaram fazer os desenvolvimentos de forma mais serena, seguindo esquemas provenientes da Grã-Bretanha do pós-guerra. Assim o explica J. A. Lamas, morador de Benfica, em entrevista de 2009. Mas, infelizmente, surgiram interesses... defendidos por um Brigadeiro da época... daqueles que “olhavam, queriam e ordenavam”.

ALA, na última parte de A Ordem Natural das Coisas, inclui uns capítulos dedicados à sua tia Madalena, onde ela expressa com pesar essa mudança vertiginosa no carácter de Benfica, assim como o seu próprio desaparecimento... em linhas de um dramatismo superlativo... e intercaladas pelo final, assim mesmo, da família Valada. Há uma espécie de continuidade entre o “ente” Portugal e a singularidade que se descreve. O passado como morte, não como saudade, como fim de tantas coisas que um dia começaram e que uma “ordem natural” finaliza; teríamos de remontar a Parménides para encontrar o seu oposto... Mas, mais importante aqui é a seriedade com que ALA aborda e desenvolve. E o parágrafo reproduzido de Comissão das Lágrimas exprime-o de maneira mais diáfana, translúcida e dinâmica... Passar do que é exímio ao banal e vice-versa; um devir sincopado... que ilude a representação. E aí entra o génio, a elegância de António Lobo Antunes.


por Luis Ignacio Malagrida Pons
31.08.2024


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