Sérgio Almeida: «'Crónicas', de Lobo Antunes: os escritos que nos conseguem ler» (sobre As Outras Crónicas)
Ao antagonismo em que cada vez mais estamos mergulhados não escapa a própria literatura. Numa lógica pseudo-competitiva que carece de sentido, inventariam-se autores e géneros como se estes se digladiassem entre si e não convergissem para propósitos idênticos.
Mesmo dentro da própria obra, essa necessidade permanente de
conflito já se faz sentir. Na bibliografia descomunal de António Lobo Antunes,
por exemplo, tende-se demasiadas vezes a colocar em planos opostos os seus
romances e livros de crónicas. E se não deixa de ser verdade que é o próprio
escritor que, em certa medida, contribui para essa avaliação, ao desvalorizar a
sua produção cronística, nem por isso deixamos de estar perante dois universos
que dialogam em permanência, numa intertextualidade a vários títulos
fascinante.
Afinal, assistimos em ambos, ainda que com modelos bem
distintos, a uma partilha do «espaço da ficcionalidade, da intimidade e da
subjetividade», como bem sublinhou a docente Agripina Carriço Vieira a
propósito de uma oficina de actores realizada pelo Teatro D. Maria II que
partiu deste segmento da obra do autor de Memória de Elefante.
A mais recente reunião das suas crónicas, escritas entre
2013 e 2019, confirma-nos o vigor do registo antuniano e o amplo domínio do
género. Até mesmo quando assumem formas tão distintas como uma evocação perene
da infância ou um vislumbre sobre o ofício da escrita.
Quer numa quer noutra, o leitor jamais é colocado à margem.
Nestas viagens mentais ao início dos tempos, Lobo Antunes é quase sempre o
miúdo que se recusava a encaixar nas convenções mais genéricas ou na
expectativa dos demais; já então maravilhado com o poder que as palavras podem
assumir, quando dispostas na ordem, construía universos alternativos através da
escrita, em cadernos que invariavelmente destruía, por entender que ainda não
tinham a qualidade suficiente.
Como um romance eternamente inacabado que abre mão de um
maior experimentalismo e da propensão fragmentária presentes nas suas obras de
maior fôlego, as crónicas de António Lobo Antunes são tanto um microcosmo a
partir do qual entrevemos o que nos rodeia como um álbum de memórias que
folheamos sempre com gosto.
por Sérgio Almeida
Jornal de Notícias
09.04.2024
Comentários
Enviar um comentário