Hélder Beja sobre O Tamanho Do Mundo

O último livro de Lobo Antunes

«tantas vidas em nós, para onde irá isso tudo, é impossível que os mortos não andem aí à procura, sentem-se na sala de baixo, aqueles passinhos nas tábuas, um estore solto a falar, tenho setenta e sete anos e ainda me falta tanto.»

O Tamanho do Mundo
é um livro para ler em voz alta, não como chamamento ou oração reconhecível pelos seguidores do credo antuniano, mas antes no recato dessa mesma solidão que se mede «pelos estalos dos móveis à noite», na companhia da garganta que tosse dentro da nossa a chamar, cientes de termos tantos ossos a mais no corpo. Fazê-lo (lê-lo mesmo assim, a sós e sonoramente) ajuda a perceber a força quase mântrica da palavra de António Lobo Antunes, provavelmente e ainda o maior escritor português deste tempo.

A solidão de Lobo Antunes é muito maior do que se possa pensar. Comecemos por aquela de que nos dão conta as personagens deste livro e que é povoada por mortos e fantasmas, ecos e rememorações, uma mochila a transbordar com anos e mais anos de passado e um homem que remexe a trouxa – a infância e esses tempos adultos e vigorosos, a camisa preferida de uma filha que se amou e a roupa suja de todos os erros que se cometeu, as meias rotas de um arrependimento e as gravatas lustrosas de quando havia saúde e viagens. Para fazê-lo, esse homem senta-se numa casa vazia em que pode até escutar «a tosse de um cano na parede» e desejar que aqueles que lhe são mais queridos o assombrem: «ia jurar que os meus pais, afinal vivos, descem os degraus em passinhos leves, desaparecendo para sempre».

Dizer que O Tamanho do Mundo é um romance polifónico tem tanto de certo quanto de irrelevante. Porque se é verdade que a solidão de Lobo Antunes nos chega por três outras vias além da deste homem septuagenário (uma filha renegada pelo pai e cujo rancor fareja por ele no Outono da vida; uma mulher humilde com «dinheiro a dar com um pau» e cuja única tarefa é fazer companhia ao velho rico; um advogado que fugiu da província para se enterrar em Lisboa e que sente a falta «do cheiro da serra e do vazio dos domingos»), é ainda mais certo que uma voz atravessando todas as páginas jamais se altera, e essa é a voz do escritor, essa é a voz da solidão de Lobo Antunes.

Como um sacerdote louco e infalível, o escritor embala a pena numa vertigem descritiva, repetitiva e exaustiva pelo envelhecimento, a degradação e a morte, o desejo, os corpos e o sexo, as casas, as famílias, «os objectos que aumentam nos naperons» e os sapatos vazios, as cidades, os prédios e as ambulâncias, o amor, o sarcasmo, a indiferença e o sofrimento, o campo, as profissões, os cheiros e as «rugas futuras». As personagens de livros passados e o passado. As vidas. Tantas vidas cabem num romance de Lobo Antunes, tanta gente, tanta aventura e tanto lamento.

O Tamanho do Mundo claustrofóbico em que nos movemos aumenta consoante Lobo Antunes se aproxima de cada quadro dissecado, de cada paisagem, de cada objecto, de cada ser humano. A micro-câmera dos seus olhos, ligada a um motor de linguagem que parece inesgotável, consegue nomear o visível e o invisível para lá de tudo quanto se poderia supor. Avisa-nos que «é impossível para uma terra estar viva quando lhe tiram os mortos porque quem a habita e nos fala ao ouvido é quem sopra no vento». Lembra-nos que todos temos ou tivemos mãe, «o relógio acolá a tricotar minutos graças à agulha dos ponteiros, tecendo o cachecol do tempo a caminho da noite quando só ele e eu existíamos no escuro porque a minha mãe, ao adormecer, desaparecia no nada, apenas uma sílaba».

Estamos muito longe do territoriozinho da trama e do enredo, das telenovelas vendidas em formato tijolo de papel, das sinopses capazes de apaixonar aqueles senhores e senhoras muito postas. Estamos sozinhos e é por isso que uma certa solidão se mede também «pela quantidade de narizes que temos à volta». Numa comparação mal amanhada, é esse o outro tipo de solidão literária de que padece António Lobo Antunes. Porque são muito poucos os narizes ao seu redor capazes de mergulhar assim e suster a respiração durante tempo suficiente para que dali saiam umas linhas que valham para alguma coisa. O caso Lobo Antunes não é único: a solidão que o mata é a solidão que o salva, que o salva para poder trabalhar assim.

Declarar que ninguém escreve como Lobo Antunes é ao mesmo tempo um lugar comum e o melhor elogio que se lhe pode fazer. Agora é rezar ao deus do bom senso para que não se invente por aí um prémio capaz de lhe impingir aquela classe de herdeiros versados em «palavras que se acendem e apagam sem que ninguém as escute».


por Hélder Beja
01.02.2023

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