«António Lobo Antunes já não é daqui» (TSF - Postal do dia com Luís Osório)
1.
Caro António
Fazes hoje 80 anos.
E continuas a escrever todos os dias, todas as manhãs, no lugar onde estás implacavelmente sozinho com tudo o que carregas - os fantasmas da vida, os fantasmas dos livros, os filhos da puta que fazes por não esquecer, as memórias.
Fazes hoje 80 anos e é provável que a tua cabeça já esteja na próxima manhã, no momento em que despertarás na ideia de que há trabalho para fazer, páginas para serem escritas, um caminho até ao atelier onde estão as tuas canetas, a tua desarrumação, a liberdade que te escraviza.
Fazes hoje 80 anos e talvez o país não te celebre como merecerias. Há sempre tanta coisa a acontecer, tanto estardalhaço, tanta vaidade injustificada, tantos novos personagens que têm de ser lançados para que possamos estar entretidos a fazer e a desfazer ídolos de e com pés de barro.
2.
Querido António
Conversámos algumas vezes.
Boas conversas, tu falavas e eu escutava e aprendia. Disseste-me que há pessoas que nos tocam com um dedo e fica uma nódoa negra que não passa, mesmo quando disso estamos convencidos.
É bem verdade.
Deixaste-me uma nódoa negra que desvalorizei com zelo e constância. De vez em quando falo com Daniel Sampaio, nosso amigo comum e íntimo, há uns meses contava-me da tua felicidade por seres reconhecido em Paris ou Berlim como um dos melhores escritores da história da literatura.
3.
Não seria necessário isso, António.
Tu és único.
Diferente de todos os outros e outras.
És extravagante e absoluto.
Ninguém escreve ou imagina como tu.
Os teus livros são esmagadores pela diferença. Mesmo quando não gosto, mesmo quando não te percebo, é sempre uma viagem que me propões, por vezes uma viagem ao abismo... contigo temos de estar sempre preparados para o que não desejamos ver.
4.
Quando te penso a escrever penso que o fazes no limbo.
Não acordado, mas já não a dormir.
Como se escrevesses nas madrugadas em que acordas (sem acordar) e te levantas para marcar o papel com a força do teu inconsciente, dos teus pesadelos, da tua loucura, da tua morte que ainda é pulsão de vida.
Fazes 80 anos, António.
Como é possível?
Não sei se continuas a fumar - quando te vi pela primeira vez com um cigarro quis fazê-lo como tu, faltou-me o jeito.
Também não sei se continuas a desligar o aparelho para não ouvires a voz de quem te chateia.
5.
Mas sei que continuas a escrever.
Todas as manhãs a caneta (ou o lápis) no papel e as palavras a saírem-te muito pequeninas, quase ilegíveis, quase sem pernas e corpo que se veja, como se fossem escritas por um espectro, por um feiticeiro, por alguém que já não é daqui.
Querido António.
Fazes hoje 80 anos.
E és o melhor de nós.
Luís Osório
01.09.2022
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