Público: Um dueto de António Lobo Antunes e Marcelo Rebelo de Sousa sob o signo da liberdade

O Presidente da República agradeceu ao escritor António Lobo Antunes ter «contribuído para a nossa liberdade, por aquilo que pensou, por aquilo que fez e por aquilo que escreveu» e atribuiu-lhe a Ordem da Liberdade no colóquio que celebrava os 40 anos da sua vida literária.

foto de Daniel Rocha

Quando se olha ao espelho, e António Lobo Antunes diz que não acontece muitas vezes, o que vê no espelho intriga-o sempre. «Este cabelo cinzento não me pertence. Esta cara marcada por rugas não é minha. Eu continuo a ser um miúdo que se olha no espelho, de olho azul vivo, a espreitar-se com curiosidade», contou o escritor de 77 anos no final do colóquio dedicado aos 40 anos da vida literária do autor de A Outra Margem do Mar [...] que decorreu no sábado na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Sentado a seu lado no palco estava o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, que uma hora depois, de surpresa, lhe entregou a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade numa sala onde estavam também os antigos Presidentes da República Jorge Sampaio e Ramalho Eanes.

«Não sou um senhor de uma certa idade que manteve o coração jovem. Penso que sou um miúdo cujo envelope se gastou. Não mais do que isso», afirmou António Lobo Antunes, que por trás das feições de agora vê o rapaz de 14 anos que, para desespero dos pais, em vez de estudar, passava o tempo a escrever. «A minha vida foi sempre isso. Éramos seis irmãos – perdemos dois de nós –,​ eu era o mais velho e os meus irmãos sempre se habituaram a ver-me escrever. Não fazia mais nada».

Foi com este regresso à infância, aos tempos em que a mãe ensinava todos os filhos a ler, em que a avó lhe comprava «os romances de uma página» que ele escrevia e o avô lia o jornal na Praia das Maçãs, que Lobo Antunes iniciou o seu longo monólogo, no qual evocaria também o dia em que o irmão João se foi despedir dele antes de morrer e contaria como ficou sensibilizado com o apoio de Paulo Portas ou do general Ramalho Eanes nesse momento de dor.

Mas também regressou ao tempo em que viviam numa casa com jardim, «com criadas, como se dizia na altura», e viu uma vez, quando era miúdo, a empregada a fazer xixi. «Aquilo fez-me uma aflição enorme. Ela estava de cócoras a fazer xixi e eu à hora do jantar perguntei aos meus pais: "Porque é que os homens fazem por um tubinho e as meninas por um buraquinho e as criadas por uma escova?!"». A sala explodiu de riso. O Presidente da República manteve a sua pose, atenta, com um sorriso. «E os meus pais conseguiram explicar isto sem magoar, sem espantar a criança que eu era».

E foi isto que Lobo Antunes começou a escrever. Quando teve um livro que não o envergonhava, publicou-o. Era Memória de Elefante. «As únicas pessoas que disseram bem do livro foram a Agustina Bessa-Luís e o José Cardoso Pires. O livro levou pancada de toda a gente. Era a pior merda do mundo. Logo a seguir saiu numa tradução norte-americana e eu recebo críticas espantosas». Por cá, continuou o escritor, o crítico literário João Gaspar Simões, «que eu não conhecia de parte nenhuma», escreveu que isso acontecia «porque a tradução era melhor do que o original».

Isto serviu para Lobo Antunes contar que quando num jantar organizado por Mário Soares deu logo à entrada com João Gaspar Simões, «um senhor pequeno, rechonchudo», lhe disse: «"Ó meu filho da puta, desaparece-me daqui!" Deu-me um prazer que não imaginam vê-lo… toc, toc, toc, com o Augusto Abelaira ao lado a dizer-lhe "mas porque é que se vai embora?", com medo que o selvagem do miúdo o pontapeasse». Desta vez as gargalhadas na sala ecoaram mais alto, e mais tarde, tanto a plateia como o Presidente da República, que continuava impassível, ouviram Lobo Antunes afirmar que a crítica literária em Portugal não o perdoava por ser de «uma família conhecida», nem lhe perdoava ter olhos azuis. «Não perdoavam eu ser bonito. É verdade. As pessoas não perdoam a beleza, como não perdoam a inteligência, como não perdoam o talento».

Para terminar o assunto do «sentimento da inveja», referiu que «o livro vendia, vendia» e ele «tinha namoradas, namoradas, namoradas, namoradas». Com o livro seguinte, Os Cus de Judas, «isto continuou», mas o escritor não estava contente com os livros, sabia que não eram bons e que tinha de trabalhar muito mais. «E pronto, é o que tenho tentado fazer na esperança de que os meus avós, os que estão no Minho, no Algarve, os que estão no Brasil, se lembrem de mim. E que rezem por mim. É o que eu peço às pessoas, que rezem por mim».

O Nobel que tarda tanto

Na manhã de sábado, o escritor e filósofo francês Bernard-Henri Lévy, que fez a conferência de abertura, mostrou-se feliz por o seu país ter anunciado a entrada da obra do escritor português na Biblioteca La Pléiade, considerada a colecção de referência da literatura mundial. «Mas há um gesto que se impunha, há uma recompensa que se impunha, há uma recompensa que ele merece há tantos anos e que nos faz perguntar: como é possível que tarde tanto? A recompensa que eu peço esta manhã para António Lobo Antunes é naturalmente o Prémio Nobel da Literatura», disse o intelectual francês.

Bernard-Henri Lévy considerou António Lobo Antunes «um dos escritores maiores do nosso tempo, todas as línguas incluídas», e afirmou que há poucos escritores vivos que ele coloque tão alto. E durante uma hora analisou a obra do português, dando algumas recomendações para os leitores: leiam-no pensando que se trata de um músico, pensando no seu trabalho de escrita e deixando de lado todos os preconceitos de que se armaram antes de começar a leitura.

Horas depois, na mesma sala, Marcelo Rebelo de Sousa dizia que a obra de António Lobo Antunes nos vai acompanhando à medida que envelhecemos, salientando especialmente o cronista, a quem chamou «um médico das almas». E comentando as perplexidades do escritor perante o seu reflexo, acrescentou: «Eu prefiro não olhar para o espelho e partir do princípio de que estou eternamente jovem. O António olha para o espelho e diz: "Eu vejo ali o jovem que era." E é verdade. Como ouvimos, ele continua a ser o jovem que era».

O Presidente da República lembrou também que há um quarto de século havia um debate na sociedade portuguesa sobre o Prémio Nobel da Literatura para o António Lobo Antunes. Debate que rejeitava, porque sempre achou que o autor de Fado Alexandrino estava acima disso. «Não precisava do Prémio Nobel da Literatura para ser quem era», disse no encerramento do colóquio. «Isso ficou mais claro quando a Pléiade o reconheceu e o chamou ao Olimpo. [António Lobo Antunes] entrou no Olimpo. Não há que esperar notícias dessa capital da Europa nórdica. Não importa, é perda de tempo», acrescentou o Presidente da República.

«Claro que o Bernard-Henri Lévy fez bem em ter dito o que disse e só mostra como é consistente, persistente e tem aquele traço francês que é não se esquecer daquilo que pensava já há 40 anos», disse Marcelo Rebelo de Sousa, lembrando que para os portugueses o que é fundamental é que António Lobo Antunes ganhou já tudo o que havia a ganhar de prémios.

«Mesmo pedindo que rezemos por ele, coisa que a mim, católico militante, calha muito bem, acho que é desnecessário no seu caso. É um daqueles casos de acesso à eternidade por mérito próprio. A genialidade abre "uma via verde", ou melhor, eu não digo a cor para não ser mal interpretado. Nestes tempos de campanha eleitoral o melhor é não dizer nada, porque irão dizer tudo sobre mim» [gargalhadas na sala], comentou, rectificando para «uma via directa».

«Diz o António Lobo Antunes que os sucessivos Presidentes da República sempre tiveram um carinho especial por ele. Mas eu acho que os portugueses, ao longo destes anos, sempre tiveram carinho pelo António. Por isso, os Presidentes cumpriram a sua função: interpretar a vontade do povo. Para isso são eleitos», acrescentou.

«Que posso eu dizer senão agradecer-lhe a sua juventude, agradecer-lhe aquilo que por nós fez, agradecer-lhe a sua irreverência e a sua liberdade. Foi, é e será sempre um homem essencialmente livre. E que contribuiu para a nossa liberdade, por aquilo que pensou, por aquilo que fez e por aquilo que escreveu. Como reconhecer isso? É muito simples. É o pouco que está ao alcance de um Presidente da República, que é atribuir-lhe a Ordem da Liberdade nestes 40 anos de obra literária. E é isso que eu passo a fazer». E assim fez, perante uma enorme plateia a aplaudir de pé.


texto de Isabel Coutinho
29.09.2019

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