Entrevista ao Público/Ípsilon - António Lobo Antunes: «Quando é que eu fui feliz?»
Ípsilon
Rasgava cartas, destruía romances. Porquê?
Porque rasgo sempre tudo.
19.10.2018
Entrevista de Isabel Lucas
Esta é uma entrevista com guião. Desafiámos o escritor a olhar para a sua obra, e ele a desconfiar logo da palavra “obra”, quando vive o que chama um momento de “espanto” na sua vida. Vai estar na Biblioteca Pléiade e tem romance novo. A Última Porta antes da Noite parte de um facto real. E depois? “Depois, inventei.”
foto de Miguel Manso |
Não gosta de falar dos seus livros. Têm uma existência que o ultrapassa e, depois de escritos, esquece-os. Hesita se devem ser chamados “romances”, continua a desprezar as crónicas como trabalho menor. Evita chamar personagens às pessoas ou vozes que cria. No fundo, assume que são sempre ele, porque todas passam por ele. Estamos no limiar da autobiografia, território subterrâneo em que convivem as coisas mais comezinhas e uma poética que quem já leu António Lobo Antunes reconhece às primeiras linhas. Ele continua a encolher os ombros. Diz que é pudor. Prefere continuar a falar dos livros dos outros. Sabe de cor centenas de frases, parágrafos, versos de outros escritores. Há uns, de Yeats, escritos a marcador pela sua mão na parede da sala, junto à janela que dá para a serra de Sintra. «The intellect of Man is forced to choose /Perfection of the life, or of the work, / And if it take the second must refuse / A heavenly mansion, raging in the dark. / When all that story’s finished, what’s the news? / In luck or out the toil has left its mark: / That old perplexity an empty purse, / Or the day’s vanity, the night’s remorse». São de The Choice, A Escolha.
Aos 76 anos, quando acaba de publicar o 29.º romance, A Última Porta antes da Noite, e depois da notícia de que a Biblioteca Pléiade vai publicar a sua obra, lançámos-lhe o desafio e ele aceitou: viajar pela obra, olhar para ela e ir à génese e à criação.
Diz sempre que não relê os seus livros. Não teve a tentação, agora que a sua obra vai ser publicada na Pléiade?
Não.
O seu primeiro romance, Memória de Elefante, foi publicado na Primavera de 1979, há 40 anos. Demorou a chegar...
Já tinha escrito uns dez ou 15 antes, ia tudo para o lixo. Na altura, vivia sozinho num apartamento minúsculo no Monte Estoril e tinha o vício do jogo. Saía do consultório e ia directo ao casino [do Estoril]. Não tinha dinheiro, gastava tudo na banca francesa. E escrevia sempre, mas a maior parte do que escrevi acabava no lixo, na figueira do quintal dos meus pais. E esse, não sei porquê, não deitei fora. Mas ninguém o queria. Foi Daniel Sampaio que andou com ele de editora para editora durante dois anos. Eu continuava a escrever. Quando ele saiu, já tinha feito Os Cus de Judas (1979), estava a acabar O Conhecimento do Inferno (1980). Depois uma editora pequenina, a Vega, aceitou o livro.
Quais eram os argumentos das editoras para justificar o “não”?
Que um livro não se escreve assim. Não tinha operários bons e patrões maus, nem nada disso. A Vega aceitou e obrigou-me a mudar o título, que era Deste Viver aqui Neste Papel Descripto...
Que depois seria o título de um livro de cartas...
Que não teve nada que ver comigo. Foram as miúdas [as duas filhas mais velhas]. Nunca li esse livro. Eu mandava as cartas [de Angola, onde cumpria serviço militar] e não voltei a lê-las. Têm interesse? Deve ser um rapaz que quer escrever, que quer falar nisso e depois é guerra, guerra, guerra. Não vi o filme [Cartas de Guerra, de Ivo. M. Ferreira]. Aquilo foi muito duro para mim, África. Quando as miúdas disseram que queriam publicar, perguntei: “Porquê?” Disseram: “Porque a mãe fica mais viva.” A mãe é que tinha aquilo guardado. Eu rasgava as cartas todas.
Porque rasgo sempre tudo.
Há algum remorso?
Não. Andei dez anos a fazer um romance, antes de ir para África, durante África e depois de África. Foi para o lixo. Não prestava e os outros não prestavam.
Não destruiu Memória de Elefante.
Não. Queria publicar. Era, de certo modo, a celebração de um... Pertenço à classe dos eternos culpabilizados.
Por que diz isso?
Porque tive muitos privilégios e tinha consciência deles. E sempre me censurei atitudes de toda a ordem. Talvez tenha remorso por ter vivido mal e de uma maneira estúpida muitas vezes.
Porquê?
Não sei se era autopunição — porque tive muita sorte, nasci com muitos dons.
Podia ter sido muitas coisas?
Isso penso que não. Quando era miúdo, passava horas no quarto a olhar para o tecto, como diz o meu irmão Miguel [Miguel Lobo Antunes, à Visão]. Gosto tanto dos meus irmãos! Não falávamos muito, mas nunca nos zangámos. Era uma relação feita de silêncios. Às quintas-feiras jantávamos em casa dos pais, três de um lado, três do outro. Eu ficava à direita dele, porque era o mais velho, o João à esquerda e quem falava era, sobretudo, o pai.
Falavam de quê?
De pintura, de música, de literatura. Ele tinha um gosto que não era o meu. Não era um homem criativo. Para aí com 13 anos, eu tinha de ler um capítulo por dia do Salammbô [de Flaubert]. Era uma chatice. Eu era um miúdo. Depois fez-nos começar a ler em inglês, por autores que eram mais fáceis. Oscar Wilde é fácil para um miúdo.
Discutiam?
Não era possível discutir com ele. Ele tinha nascido com a razão. É evidente que não era burro, mas não era tão inteligente como imaginava. Ele foi importante para nós. Há um episódio decisivo. Não morri de meningite quando tinha nove meses... Deve ter sido horrível para eles. O meu pai estava na tropa em Lagos e a minha mãe estava lá, tinha acabado de ter o bebé, o primeiro filho. Quando deram por mim, eu estava em coma. Ele tinha 26 ou 27 anos, e ela 22 ou 23. Aqueles infelizes estavam em Lagos, na altura os transportes eram muito poucos. De Lagos para Faro, um comboio muito ronceiro, uma data de horas. E depois de Faro para Lisboa, mais uma data de horas. Demoraram um dia para chegar e foram directos a Santa Marta, onde o meu pai trabalhava. E foi ele que me fez a punção lombar, espetou-me a agulha nas costas, tirou o líquido, foi ver ao microscópio... Foi corajoso. Estava à espera que eu morresse, como tinha morrido um irmão dele com a mesma idade. E meu avô fez uma promessa: se eu não morresse, levava-me a Pádua. Saí do coma, comecei a mexer-me e levaram-me a Pádua, com sete anos. Foi uma viagem óptima, de um mês, pela Europa. Espanha, França, Suíça, Itália. Lembro-me de tudo, dos museus, onde gostava sobretudo dos escarradores. Eram cromados! Apetecia-me imenso cuspir ali.
Experimentou?
Claro. Mas depois era preciso estar que tempos diante dos quadros. Ele dava explicações intermináveis. Estava a contar isto e a lembrar-me de quando levaram o [Théophile] Gautier a ver As Meninas, do Velázquez, ao Prado. Na sala, o Gautier olhou e esteve meia hora calado. A única frase que disse foi: “Mais, où est le tableau?” É uma crítica de pintura espantosa.
Gostava que os seus livros tivessem esse efeito nos leitores?
Tem uma vantagem enorme sobre mim: é que os leu...
E o António escreveu-os...
Gosto de ter a sensação de que não estou a ler. Quando estou perante Terna É a Noite [Scott Fitzgerald], esqueço que estou a ler. Por exemplo, a gente lê o Faulkner e não sente o escritor. Ou o Fitzgerald. A prosa dele é magnífica. A delicadeza, a mão, tudo aquilo é perfeito. Tenho muita inveja. Inveja boa, como dizia o Zé [José Cardoso Pires]. O Zé...
Os Cus de Judas é publicado logo depois de Memória de Elefante. Pela primeira vez aprofunda o tema da guerra...
É difícil falar da guerra. Não sei se a guerra era tanto o tema quanto o espanto daquele rapaz que teve uma infância agradável. Os meus pais não eram ricos, não havia semanadas; se queríamos dinheiro, tínhamos de o ganhar. O meu pai ganhava pouco. Era o desespero da minha mãe, porque ia para o consultório e, em vez de levar dinheiro aos doentes, levava-os para casa. Não era capaz de levar dinheiro às pessoas, porque estavam doentes. E nós éramos seis filhos. Tínhamos uma casa grande que o meu avô, pai do meu pai, tinha comprado. Ele era rico. Chamava-se António Lobo Antunes e eu adorava-o. Quando soube que eu escrevia, tinha eu oito ou nove anos, chamou-me e perguntou-me: “Ouve lá, tu és paneleiro?” Eu não sabia o que era paneleiro. E fui perguntar e a explicação deixou-me ainda mais aflito.
Foi esse o rapaz que foi à guerra e se espantou...
Não foi bem espanto. Aquilo era um erro formidável. E era muito violento e eu pensava que ia morrer lá, como tinha morrido um primo meu. Não me apetecia morrer, porque tinha a certeza que ia escrever livros como nunca se tinham escrito. E só escrevia porcarias. Deitava tudo fora e recomeçava. Comecei a escrever mais ou menos consciente aos sete, oito anos, e só fiquei mais ou menos contente aos trinta e tal, com Memória de Elefante. Mas demorei a deixar traduzir o livro. Achava que não tinha qualidade.
Os Cus de Judas veio confirmar alguma coisa?
Dentro de mim, não. Era a consequência natural. Eu não pensava do que era ou não capaz, de falar ou não da guerra. O meu problema era o nível da prosa. Até que ponto a minha prosa é boa? E falar da guerra, nesse sentido também, é muito complicado. E falar de vivência, coisas pessoais. E foi estranho. Os Cus de Judas teve sucesso imediato. Lembro-me que quis fazer o lançamento de Memória de Elefante e estavam o editor, uma empregada da editora e eu. N’Os Cus de Judas já havia uma multidão. Os meus irmãos diziam-me: “Na praia está toda a gente a ler Memória de Elefante.” Não estava preparado para aquele sucesso e fiquei desconfiado. O que terei feito de mal para as pessoas gostarem do livro?
Publica O Conhecimento do Inferno (1980)...
Nesse livro começa a aparecer qualquer coisa mais próxima do que eu queria. Comecei a usar recursos técnicos que até então não tinha usado. Paralaxes... O livro é mais rico; o vocabulário está melhor. Começo a conseguir qualquer coisinha.
E logo depois Explicação dos Pássaros (1981)...
Eu escrevia muito. Não ia a lado nenhum. Tinha uma vida sentimental tormentosa que de sentimentos não tinha nada, porque... porque eu era muito bonito, nem tinha de me mexer. E era estúpido, porque isso depois fazia-me sofrer.
Sofria?
Sofria — porque não estava a ser justo. Estava a usar as mulheres. Não estava a ser honesto.
Muda de editora...
Sim. Assinei com a D. Quixote a publicação de Fado Alexandrino (1983). Esse livro foi um desafio do meu pai, que me disse que eu só seria escritor quando fizesse um livro à Balzac — sou grande admirador do Balzac —, que fosse um bocado um quadro do país. Estava na Balaia, no Algarve, e estava no fim do livro e achei aquilo uma merda; rasguei e fui pôr no caixote do lixo. Na manhã seguinte, apanhei tudo do lixo, cheio de ovo por cima, gordura... E foi o livro seguinte. Foi o livro que me abriu as portas.
Por essa altura, estavam traduzidos na América Os Cus de Judas e Explicação dos Pássaros, e aparece um americano, Thomas Colchie, que queria ser meu agente. Achei chique ter um agente em Nova Iorque e assinámos um contrato. Só que ninguém queria os livros. Mesmo assim, ele insistia: “Vais conquistar o mundo.” Não conquistava nada. Um dia telefona-me e disse: “Random House.” E lá fui eu de avião. Apresentaram-me o editor, perguntei-lhe se tinha gostado do livro: “Não li.” “E vai publicar um livro que não leu?” “Vou, porque se o livro for mau não compro mais nenhum a esta gente.” O Tom era agente do Jorge Amado, do Reinaldo Arenas, do Ernesto Sabato. Apanhámos as primeiras páginas do The New York Times, Washington Post, Los Angeles Times, Chicago Tribune. Quem tem isto tem a América e os outros países que não me queriam — França, Espanha — desataram a querer. De repente, estava uma estrela. E em Portugal continuava a levar gloriosamente porrada. Resumindo, Fado Alexandrino foi para responder ao desafio do meu pai. Queria que eu fizesse um livro sobre Portugal. Pensei: como é que vou juntar pessoas de classes sociais diferentes que não se dão entre elas? Por exemplo, em casa dos meus pais se uma pessoa não pertencia a uma classe aceitável... Cada classe tinha os seus sinais e quem não pertence não percebe. Irritava-me ter nascido naquela classe.
Tendo nascido nessa classe e vivido nela, chega ao detalhe de linguagem e de ambiente de classes diferentes. O seu último romance é mais um exemplo dessa diversidade de gente que o habita. Como é esse trabalho?
Sempre gostei de estar com o que chamam “pessoas humildes”. Foi com essas que aprendi mais. As classes altas não me interessam. Nunca fui snob. Costumo comer numa tasca e vou ouvindo. Passei muito tempo no campo entre gente do campo. Têm frases que adoro e um poder de síntese. A riqueza do vocabulário popular é tremenda. E eu ia a cavalo nisto tudo. Mas antes houve um escritor importante, o [Antoine] Blondin, que ninguém lê. Era um homem livre e tinha uma enorme felicidade de escrita para a qual é preciso sofrimento. Tinha uma mão feliz, muitas vezes. E humor. Mas nunca sabemos bem como é.
O seu pai leu Fado Alexandrino?
Leu, porque foi dizer aos meus irmãos: “Este livro vai ficar.” Tinha a mania que tinha opiniões. A mim nunca me disse uma palavra sobre o livro. Eu sabia que era o filho que ele admirava, mas a nossa relação era tempestuosa. Bateu-me mais a mim do que aos meus irmãos todos juntos. Eu não fazia asneiras, estava sempre quieto. Acho que isso o irritava. Uma vez, eu tinha uns 14 anos, não me apeteceu ir ao liceu e não fui. Ele entrou no meu quarto, abriu a janela, de repente ficou luz e eu acordei. A minha pergunta foi: “Vem assistir ao acordar de um génio?” Ele não respondeu. Só saiu. Eu, para ele, era uma coisa esquisita. Lembro-me que uma vez ele me estava a ralhar e a minha mãe lhe disse: “Não o podes tratar como os outros, que esse é diferente.”
Depois veio Auto dos Danados (1985)...
Esse livro levou tanta pancada. Este é o país do beliscão. E depois?
As Naus (1988)...
Tenho dúvidas quanto a esse livro. Tem um ar caricatural, um bocado carnavalesco. Passei a instrução primária a fazer bigodes nos retratos dos reis e dos navegadores por quem, no fundo, tenho enorme admiração. Afonso de Albuquerque era um grande escritor. D. Duarte é um escritor espantoso! A minha primeira paixão foi Fernão Lopes. Se tivesse de escolher um escritor em português, escolhia Fernão Lopes. Comecei por ler D. Duarte, porque tem um capítulo espantoso sobre a depressão.
Mas com este livro eu queria fazer experiências. No fundo, continuava a tentar um caminho que só descobri com os últimos oito ou dez livros. O livro a seguir [Tratado das Paixões da Alma, 1990] começou por ser muito autobiográfico. Era eu e o neto do caseiro que me serviram de modelo. Mas, ao contrário desse do livro, nunca fiz revolta nenhuma... Eu era cobarde, tinha medo. As minhas ideias também não eram aquelas. Eu só queria escrever. Achava que tinha sido feito para escrever. Acho que nunca apoiei nada, nenhum partido. Claro que tenho o coração à esquerda, mas não tem nada que ver com estes partidos. A mim o que me interessava era a literatura. Escrever, escrever, escrever até fazer aquilo que eu queria.
Pelo menos três dos seus livros partem de casos reais relatados nos jornais, incluindo o último...
Preciso de um cabide onde pendurar a história. Não me apetece contar histórias. Por exemplo, o Gardel [A Morte de Carlos Gardel, 1994] foi difícil. Fiz tantas versões do primeiro capítulo até aquilo encarreirar. Enfim... Quer falar da minha obra. Obra, que palavra! Acho que esta obra tem um desígnio, mas escapa-me. Não me é consciente. E depois há frases que gostava de ter escrito. Por exemplo, um escritor francês, o [Louis] Calaferte, disse: “Não me sacudam, que estou cheio de lágrimas.” O que eu não dava para ter escrito isto!
Mas escreveu A Ordem Natural das Coisas (1992), que refere sempre como “um livro bom”...
Em que descrevo a morte da minha tia Madalena, de quem gostava muito. Aquilo é uma carta de amor para uma pessoa de quem gostava muito. Cada vez que eu estava doente pedia à minha mãe para chamar a tia Madalena e ela vinha e eu ficava melhor.
O que tinha ela de especial?
Sorria. Tratava-me por “meu filho”, coisa que ainda hoje me comove, que alguém diga “meu filho”. Era irmã do meu pai. Era um acto de amor muito grande. Os meus pais, em matéria de ternura, não eram pródigos. A minha mãe era seca, o meu pai competia com os filhos. Era-me indiferente, porque eu só fazia o que queria, mas competia. Quando eu olhava para o tecto, punha-me perguntas: mas quando é que eu fui feliz? Uma vez disse isso à minha mãe, que ficou indignadíssima. “Tu, o primeiro neto, o filho mais velho, de quem toda a gente gostava tanto, nunca estás satisfeito com nada!” Tinha razão. A minha mãe não mentia.
Quando é que foi feliz?
Estava a lembrar-me do Charlie Parker. Estavam a ensaiar e de repente atirou o saxofone ao chão, começou a pisá-lo, furioso, e a gritar: “Já toquei isto amanhã.” Esta frase faz tanto sentido. Eu queria fazer mais três livros. Depois calo-me e acabou — porque fica completo, fica redondo. Bom, estou contente com eles todos, até agora. Mas nunca sei bem. Só escrevi. Andei para ali a penar, a penar, a repetir, a repetir.
Muitos dos seus livros desenrolam-se em núcleos familiares...
É um subterfúgio técnico, também. Serve para juntar pessoas diferentes e que nunca se encontrariam. Voltando a Fado Alexandrino e ao meu problema de como pôr pessoas de classes sociais diferentes juntas, inventei um jantar do batalhão, resolvia o problema. O Balzac diz: «Il faut avoir fouillé toute la vie sociale pour être un vrai romancier, vu que le roman est l’histoire privée des nations». No fundo, Fado Alexandrino é uma História de Portugal. Com este último romance não sei ainda como consegui tocar vários pianos ao mesmo tempo. Fiz tantas versões até conseguir ficar satisfeito. Agora tenho o ego muito afagado por todo o lado.
Disse que é inseguro. Onde está a insegurança?
Posso fazer melhor. Isto tudo é o resultado de muitas escritas e reescritas. Não sei como é que os outros fazem. Sei que Balzac emendava muito e eu pensava que não. O Cortázar — um escritor com limitações, mas de que gosto — mostrou-me uma página dele e não há uma linha que não esteja rasurada, emendada. É difícil escrever. Mas felizmente agora posso não fazer mais nada.
Isso descansa-o?
Descansa-me, porque me permite trabalhar só nisto. Não tenho de ter uma segunda profissão, não tenho de ser jornalista, nem médico, nem engenheiro.
Em que livro se libertou da segunda profissão?
Já foi há uns livros. O Jeff é que sabe tudo da minha vida [Jeff Love, académico americano, especialista em literatura russa e alemã, actualmente traduz Até Que as Pedras Se Tornem mais Leves Que a Água, 2017. Lobo Antunes apresenta-o como seu biógrafo]. Só escrevo, não faço mais nada e posso viver disso. Não dá para ter uma vida de estadão. [Jeff entra na sala] Quando foi, Jeff?
Jeff Love (J.L.) — No fim dos anos 80, entre As Naus e O Tratado das Paixões da Alma.
Na Exortação aos Crocodilos (1999) põe quatro mulheres e quatro homens, em paralelo, e em Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000) volta às personagens femininas com protagonismo...
Esse livro é tão bom! Mas podia ser melhor.
O que falhou?
Eu. Eu que fiz mal. Podia ter feito melhor, se tivesse corrigido mais, emendado mais. Agora ninguém me pressiona. Não tenho prazos para escrever. Tenho medo é que isto acabe antes de eu acabar.
2001, Que Farei Quando Tudo Arde?...
É um verso óptimo.
Como escolhe os títulos?
Nesse caso é um verso do Sá de Miranda. Não sei, surgem-me. Num livro de entrevistas a escritores americanos, perguntam a John dos Passos como começou um livro. “Bom, uma pessoa vai pela rua...” É impossível dizer de onde vêm. Quando se consegue trabalhar bastante isso, começa a ser-nos oferecido. Dá ideia de que ele se gera a si mesmo. E depois tem de se estar a policiar, para não escrever asneiras. Vem de uma zona qualquer dentro de mim que não consigo reduzir a raciocínios. A sensação é que nasci com um certo número de livros. Já não faltarão muitos. Há um que já está pronto e sai para o ano, chamado A Outra Margem do Mar, e depois queria fazer mais três e acabou.
J.L. Quando ele diz que não sabe a razão dos títulos, está a brincar. Ele não gosta de falar dos livros dele. A Ordem Natural das Coisas é uma frase da mãe dele. Como quem diz, é a vida.
No seu último livro parece haver uma tentativa de chegar a uma simplicidade. Procura isso?
Não. Procuro fazer o melhor que posso. Há muitas coisas que não sei explicar. Como é que eu lido com a linguagem?
J.L. — Por que é que não queres explicar? É uma coisa interessante. Tolstoi também não queria explicar.
E há humor.
Se há, ainda bem. Na literatura portuguesa há mais troça do que humor. O Eça troça o tempo inteiro. As personagens não existem, são sempre caricaturas. O Camilo às vezes tem humor. O humor não é o nosso forte. Oxalá eu tenha humor. O Zé estava sempre a dizer que um livro sem humor não tem nada. O Zé tem humor muitas vezes. Tolstoi não tem humor. Tchekhov tem.
J.L. —Tolstoi gostava de fazer troça, também. Como o Dostoievski, que fazia troça das personagens com uma brutalidade.
Numa conversa na Ler, Steiner referiu que tem o dom do perdão, como Tchekhov. Acha que tem?
Eu não sei. Não perdoo, mas como esqueço... Não tenho rancor por ninguém.
Que personagens retém destes 40 anos?
Lembro-me que me apaixonei pela rapariga de A Ordem Natural das Coisas. Mas, de uma maneira geral, gosto daquelas pessoas. E de maneira geral, gosto das pessoas, mas tenho vergonha de mostrar, porque sou tímido. Claro que depois disfarço isso, fico desbocado.
O paradoxo, vaidade e insegurança e depois...
Já disse ao Jeff: ninguém escreve como eu. Nunca ninguém escreveu como eu em português. Para ser totalmente sincero é isto que sinto. É a minha opinião.
E a insegurança vem de onde?
De não conseguir fazer o que queria fazer.
Acha que podia fazer melhor?
Acho. E eu não sou vaidoso.
Não é?
Não. Acho que sou um homem humilde. Não? [interpela Jeff Love]
J.L. — Nesse sentido, sim.
Quais são os outros sentidos, sacana? [muda o tom] Tem sido bom ter aqui o Jeff. Não escrever sozinho tem sido muito bom para mim. Isto é muito só. A gente trabalha sozinho e acaba por viver sozinho, mesmo que haja outras pessoas. E depois há sempre o pudor.
Pudor de?...
Não tenho o direito de estar a impingir aos outros aquilo que sou. E depois também não é uma vida interessante. Estou ali quietinho a fazer redacções compridas.
Há pouco disse que lhe faltavam três livros. Para?...
Para isto ficar redondo.
O que é isso?
Gosto da ideia. É melhor ficar redondo do que ficar com bicos. Não quero começar a repetir-me. Já é muita coisa.
Ainda não falámos de O Arquipélago da Insónia (2008).
Não me lembro nada disso. Trata de quê?
Vou-lhe ler uma frase: «Começamos por uma casa, pelo sentimento, uma força em exercício, um poder que vem de há muito tempo, quando essa casa era igual mas era uma herdade, um latifúndio, quando nada faltava — a família, as empregadas na cozinha, o feitor, os campos, a vila ao fundo, e a voz do avô a comandar o mundo. Agora há fotografias no Alentejo em vez de pessoas».
É bom!
Não se lembrava?
Não.
J.L. — É uma frase muito antuniana.
Vamos a outro: O Meu Nome é Legião (2007)...
É uma frase do Evangelho. E lembro-me, é sobre os miúdos. Foi um trabalhão com eles.
Ontem Não Te Vi em Babilónia (2006)...
Trata de quê?
Uma noite em que ninguém dorme...
Ah. Se calhar não é preciso escrever mais nenhum livro.
Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004)...
É a letra de uma moda alentejana.
E o romance?
Não me lembro.
Uma “dica”: um rapaz que vem da província conhece uma rapariga, namoram, ela faz limpezas e é costureira, ele é operário. Ela tem tuberculose e vai para um sanatório longe.
Ah, já sei! É verdade. Uma vez eu estava a dar consulta no [Hospital Miguel...] Bombarda, vi passar uma senhora de idade e atrás vinha um médico e disse-me: “Olha uma coisa que pode dar um livro do caraças.” E contou-me a história dessa senhora. Foi um dos melhores presentes que recebi. Ele depois casou-se, subiu na vida, e estava com ela uma vez por semana ou uma vez por mês num quarto de pensão. Muitas vezes não faziam amor, ficavam de mão dada, só. E no Verão ela ia para a praia dele, para poder olhar para ele de longe. Foi assim até ele morrer. Ela aparece no médico, porque ele morre e ela faz uma depressão. Ele a contar-me isso e eu cheio de lágrimas! É uma história espantosa.
Boa Tarde às Coisas aqui em baixo (2003)...
É uma frase de Valery Larbaud, mas não estou a ver o que é esse livro.
Um regresso a Angola...
Ah...
Que Cavalos São Aqueles Que fazem Sombra no Mar? (2009)...
Uma família, não é? Estou cheio de vaidade de ter feito essas coisas. É bom, esse.
Sôbolos Rios que Vão (2010)...
Lembro-me bem desse. Era a história do António Lobo Antunes depois do cancro. Com os ouriços dos castanheiros da Beira Alta.
Comissão das Lágrimas (2011)...
Se calhar não é tão conseguido como os outros. «A Comissão das Lágrimas» era como se chamava aquilo em Angola. Foi difícil e terrível e não queria pôr os nomes de algumas pessoas que lá estavam.
Não é Meia Noite Quem Quer (2012)...
Um verso de René Char. São vários irmãos, não é?
Caminho como Uma Casa em Chamas (2014)...
Se calhar é o mais fraquinho.
Da Natureza dos Deuses (2015)...
São os Espírito Santo obliquamente [a família de Ricardo Espírito Santo]. O poder.
Até Que as Pedras Se Tornem mais Leves Que a Água (2017)...
Esse eu sei que é bom. Queria fazer uma trilogia de África com outros dois que aí vêm — ou seja, ficam a faltar três livros, dois passados em Portugal e um em Angola. E depois não sei, depois chateio-me de morte.
Como nasceu este livro, o último?
Li três ou quatro coisas no jornal e depois inventei.
E agora?
Estou ali [aponta para o escritório]. Com uma coisa chamada Pássaros Mais Mortais do que a Alma, já tive uma primeira versão que deitei fora.
foto de Miguel Manso |
19.10.2018
texto de Isabel Lucas
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