Entrevista ao Público/Ípsilon: «É claro que é um grande romance, fui eu que o escrevi!»
Ípsilon
10.11.2017
Entrevista de Isabel Lucas
Sentiu “a mão muito feliz” ao escrever o romance, mergulho profundo em memórias para indagar sobre o amor, a morte, a vida. É a relação entre um pai e um filho, a guerra de África em fundo. Eis António Lobo Antunes, agora, a não encontrar o rapaz que foi.
foto de Nuno Ferreira Santos |
A conversa começa por Benfica, o bairro, onde cresceu e viveu até aos 30 anos, e pelo Benfica, onde jogou hóquei em patins. É um quebra-gelo antes de uma conversa que preferia não ter porque prefere sempre não falar dos livros.
António Lobo Antunes, 75 anos, publica Até Que as Pedras Se Tornem mais Leves Que a Água. Volta à guerra para falar da relação de um pai e de um filho, de dois homens com o seu passado, de um país com o seu passado recente. Se lhe disserem que é isto, talvez ele desminta, afirmando, no entanto, que escreveu “um livro do caraças”. Com esta certeza de uma mão feliz na escrita, afirma que gostaria de fazer algo maior, maior do que tudo o que já fez, com a frase de um poeta do Leste escrita na parede do escritório, por baixo da janela e na sua caligrafia de “primeira classe”: “Do rascunho a livro, o caminho faz-se de joelhos.”
Vamos a este livro?
Leu tudo?
Li.
Estava a folheá-lo no outro dia; o livro é do caraças! Fiquei de boca aberta com aquilo.
Porquê?
Porque não tenho a menor dúvida de que é.
Explique um bocadinho.
Não li, só escrevi, mas folheei-o e parece-me perfeito depois das revisões. Não mudava nada.
“Esta noite, conforme tantas vezes desde há quarenta e três anos, tornei a sonhar com África.” Quem diz isto é um antigo alferes como o António foi em Angola. Este livro é um regresso. Como foi escrever sobre isso agora?
Tive noites horríveis. Enquanto escrevia?
Sim. Não sei explicar bem, mas a maior parte do que sou continua lá. Foi uma experiência tão radical, tão violenta. Os meus sentimentos estão misturados. Como dizia um colega: “Isto vai dar cabo da nossa juventude, da nossa idade madura, da nossa velhice”. Há sonhos recorrentes. Acontece-me acordar em pé a pedir armas. “Onde é que está a minha G3?...” Nunca se sai inteiramente de uma experiência tão radical. Estive na tropa quatro anos. Estávamos lá 27 meses e, entretanto, a vida aqui continuava, e as raparigas que não tinham ido iam subindo na carreira médica, internato, etc. Ao mesmo tempo é estranho, tive amigos a quem queria como irmãos; por exemplo, um dos capitães, o Ernesto Melo Antunes, dois oficiais que são referidos na dedicatória [José Luís e José Jorge]. Era uma amizade incondicional e uma ternura e um amor muito grandes. E a radicalidade daquela experiência fazia com que a nossa relação fosse muito, muito íntima. Lembro-me de uma vez ter morrido um rapaz e disse para o deitarem na minha cama, que ele estava só a dormir. Era a minha negação, uma espécie de loucura. Não aceitei a morte dele. Continuo a não aceitar. Morreu com um tiro na cabeça.
Quando o alferes no livro está a tentar escrever à família sobre o seu quotidiano, fica paralisado. “Como escrever acerca disto aos meus pais?”
Não é possível contar um quotidiano de guerra a quem não esteve na guerra. Eu escrevia quando alguém vinha dizer: “O avião do correio chega daqui a um quarto de hora.” E púnhamo-nos todos a escrever, a escrever as cartas. Não sei já o que é que escrevia.
Há um livro com as suas cartas para a sua então mulher (Cartas da Guerra, D’este viver aqui neste papel descripto, 2005).
Nunca li o livro, mas não se podia contar nada. Havia duas espécies de censura. A censura militar, mas também a censura política. A mim e ao Ernesto [Melo Antunes] julgo que nos abriam as cartas. Era preciso cuidado, não se podia falar das operações, de nada disso.
Estava-se na guerra sem falar da guerra.
Praticamente sim. Os militares eram extraordinários, os oficiais também. Do ponto de vista humano, fiquei com irmãos para o resto da vida.
Porquê? Com eles é possível falar da guerra?
Sim. Aquilo dói muito. Ninguém desce vivo de uma cruz, não é? A minha família nunca me fez perguntas, e eu não falei. Da mesma maneira que não vi o filme nem quis ver [adaptação de Ivo Ferreira de Cartas da Guerra, D’este viver aqui neste papel descripto, em 2016]. Deus me livre!
O que temeu?
Provavelmente achar tudo mal feito, não sei.
Por a comparação ser com a sua, a vossa, vida?
Era a nossa vida, minha e da Maria José. Era muito duro. Mas aquilo [a guerra] ajudou-me a gostar dos portugueses. Os rapazes eram excepcionais. Alguns vinham ter comigo: “Amanhã vou guiar o rebenta-minas, quero fazer o testamento.” Era o relógio, o fio, o anel. Não tinham mais nada. Nunca se queixavam. Eram extraordinários. Mas os angolanos também são.
O alferes traz da guerra para Lisboa um rapaz a quem chamará filho, um “filho preto”. As palavras com que o rapaz vai sendo qualificado variam entre preto, escarumba, macaco...
Não eram os militares que as diziam, era a população civil. Estive pouco tempo em Luanda, estive quase sempre na mata. Primeiro nas terras de Camunda e depois na Baixa do Cassange, onde não havia guerra nessa altura. Havia só o medo dela. E havia uma atitude racista da parte das pessoas nas cidades, dos brancos lá em Angola. Que os militares não tinham. Mas também eram racistas connosco. Diziam: “Vão para a vossa terra, isto é nosso, não precisamos de vocês para nada aqui.” Era desagradável. Por exemplo, Malange era uma cidade rica, tinha um clube, o Ferroviário, e se os militares iam lá ver um jogo, havia sempre pancadaria. A relação não era pacífica com os brancos em Angola. Mas este livro não é sobre a guerra. Não tem nada que ver com isso.
Não? Vai à guerra trazer muitas coisas de que lhe interessa falar.
Eu só falava com quem lá tinha estado porque havia um pudor muito grande. Continuo a não falar nisso.
Mas será sobre a guerra? Não sei.
Como refere na primeira frase, passaram 43 anos.
Passaram? Ainda lá estou. Está tudo tão vivo, os cheiros, as cores. Nunca vi nada mais bonito, os crepúsculos e os amanheceres muito rápidos, uma sensualidade enorme.
Fala das noites longas.
Sim. É o facto de estar perto do equador. Manhã às seis da manhã. Noite às seis da tarde. Jantávamos às cinco e os ataques a aquartelamento começavam por volta das onze, sempre com uma metralhadora a que os soldados chamavam a “costureirinha”, tactactac, como o barulho de uma máquina de costura. Não sei o que me fez escrever este livro. Escrevo sem plano, mas olho para este e acho que está exactamente como eu queria, dentro do meu critério literário.
Que critério é esse?
É este. Não há muitos livros que me interessem, acabo por ler sempre os meus escritores, que são muito poucos. Conheço mal o que se escreve em Portugal. Não tem que ver com arrogância nem nada disso.
Quem é que escreve bem em português?
Fernão Lopes. Cada vez que leio, acho aquilo novo. “Olhai, olhai bem, mas vede...” Francisco Manuel de Melo. Matias Aires, “porque loucos os não há senão em língua portuguesa”; já viu que bonito? D. Duarte, outro grande escritor. A prosa de Herculano é magnífica. Garrett tem uma prosa magnífica. Há muito bons escritores. Gosto tanto de ser português.
Ser português é o quê?
É sermos pequenos, feios, malcheirosos, com mau gosto, e quando estamos no estrangeiro e apanhamos um avião para Portugal... a gente conhece logo as pessoas, é tão bom! E termos esta língua que é maravilhosa. Por exemplo, nas mãos do Bocage, do Camões, até do Filinto Elísio, onde o Camilo foi aprender e a Agustina é neta, porque aprendeu com o Camilo. Não sou admirador do Camilo. Não gosto daquela pieguice toda, mas gosto da dedicatória do Eusébio Macário. “Perguntaste-me se um velho escritor de antigas novelas poderia escrever, segundo os processos novos, um romance com todos os ‘tiques’ do estilo realista. Respondi temerariamente que sim, e tu apostaste que não. Venho depositar no teu regaço o romance, e na tua mão o beijo da aposta que perdi.” É bonito ou não é? Fica-se tão contente! Eu fico. E a prosa do Antero! E era inteligente, e bonito. Tinha tudo.
Voltamos à frase, ao passado. O seu, o do alferes, o do país, o da guerra, ao psicólogo do hospital que no livro aconselha a “fechar a cabeça ao passado mas como se o passado nem sequer é passado, continua a acontecer”. O escritor Lobo Antunes socorre-se aqui de Faulkner.
Acho que isso é do Absalão, Absalão, “... it’s not even past”. Conscientemente não penso muito nisso em relação a Angola, mas mudou a minha vida.
Não. A minha mãe ensinou-me a ler com quatro anos, e eu comecei logo a escrever.
Mas durante a guerra trabalhou num manuscrito.
Andei dez anos com ele e depois deitei-o fora. As miúdas ainda têm os restos disso. Não era bom. Era complicado. E depois tinha de trabalhar, tinha de ganhar a vida, ir fazer medicina, ir para o hospital, fazia bancos em vários sítios, porque ganhava pouco. Em Angola escrevia sempre, mas nunca disse a ninguém que escrevia. Para as pessoas que me conheciam, foi uma surpresa quando publiquei o primeiro livro. Nunca falava nisso. Continuo a não falar muito.
Não estou a fugir.
Volto ao alferes, o que mata os pais de uma criança e traz essa criança para Portugal...
Matavam-se os pais e toda a gente. Às vezes matavam-se esses pais... também nos matavam a nós, mas estava lá sempre revoltado.
Há uma frase que repete nas vozes dos comandos, estar ali para “servir a pátria”. O que é que isso lhe fazia ecoar?
Eram os generais.
Que não estava a servir pátria nenhuma, e eles sabiam.
Por isso insistiam?
Insistiam. Não tive razão de queixa. Tinha do comandante-chefe, o marechal Costa Gomes, e de alguns generais, mas esses viviam no ar condicionado e na cidade e não corriam riscos. Uma vez foram lá, de camuflado novo, os nossos já não tinham cor... Uma vez, numa acção de pirataria, apanhámos uma miúda de uma tribo primitiva da África Austral, um povo amarelo, eram pequeninos, com os olhos achinesados. Tomei conta da miúda e queria trazê-la. Tinha uns quatro ou cinco anos, uma barriga enorme. Depois apareceu um velhote a reclamá-la. Não há beijos, nunca vi negros beijarem-se. Fazem isto [bate do peito]. Ele bateu no peito dela e fiquei sem ela; ainda tentei com um rapaz, mas as autoridades coloniais não permitiram, acabou por não vir. Eu queria trazê-lo.
Era preciso dar amor a alguém.
Era a procura da leveza? Até Que as Pedras Se Tornem mais Leves Que a Água. Quer contar a história deste título?
Apareceu-me de repente a frase.
Uma metáfora de amor e morte?
Nunca pensei nisso. Pensei que o título era bonito.
Mas vai aparecendo, quase como um guia de escrita.
Não sei. [longa pausa] Voltando à pergunta de há pouco, este não é um livro de guerra, não me interessa fazer um documentário sobre guerra. E claro que é um grande romance, fui eu que o escrevi! [risos] Não quer que eu seja sincero?! [ri-se outra vez] O livro está tão bem balançado. Escrevo à mão e entrego aquilo assim, e na editora alguém bate o texto e devolve-mo para eu fazer correcções. Nessa altura já me parece escrito por outra pessoa, porque a minha versão era à mão, depois chegam as folhas A4 dactilografadas. Foi assim que o li, e fiquei contente. Mas fez-me sofrer muito enquanto escrevi. Tive noites más. Lá vinham aqueles dois homens.
Os protagonistas.
Sim. Passa-se numa terra de que não digo o nome, mas foi uma aldeia onde sofri bastante, perto de Lisboa. Nunca vou esquecer o cemitério de lá. E como em muitas terras de Portugal, havia a matança do porco. Quando comecei, o que tinha na cabeça era que o filho ia matar o pai. Mas depois estava a escrever e a ler e aquilo estava cheio de amor. Sente-se isso? É um amor profundo. Se eu fosse psiquiatra ou psicanalista, dava material que não acaba. O espetar a faca no pai é uma penetração, não é? Pode ser lido de muitas maneiras, mas há uma dimensão desse género, uma morte de amor melhor do que a vida.
E há a palavra matança.
Do porco.
E em guerra.
Em guerra nunca ouvi essa palavra. Está implícito. Com as pessoas com quem tenho uma relação mais íntima, e estava a pensar no Ernesto [Melo Antunes], não precisávamos de falar, jogávamos xadrez. Ele ganhava nove em cada dez vezes. E perder é uma coisa que detesto. Ele tinha um cancro no pulmão e na véspera de morrer disse-me: “Hoje acordei todo molhado. Não me deixes morrer sem dignidade.” A morte é uma puta, já disse isto muitas vezes. Digo mais uma. Ver morrer miúdos... Eu tinha de fazer autópsias! É horrível. Mas depois quando estamos juntos, os que voltámos, é uma festa tão grande. E só falam de África.
E falam como?
Falam com humor, mas também com saudade. A maior parte dos soldados eram pobres. Muitos nunca tinham tido sapatos. Uma vez, estava no Porto a apresentar um livro e apareceram. A maior parte eram do Norte. Eram dez ou 15, e fui falar com eles; não os via há que tempos. O apresentador, que era um homem conhecido, disse: “O António gosta muito das pessoas humildes.” Eu fiquei fodido e agarrei no microfone e disse: “Os meus soldados não são pessoas humildes, são príncipes, ouviu? São príncipes!” Todos os anos fazíamos almoços e no almoço seguinte eles vieram num autocarro, com uma faixa à frente a dizer “Os Príncipes do António”. Os homens falam também de amor uns com os outros. Os meus amigos falam. É um amor sempre presente na maneira de olhar, etc.
Sempre se referiu à sua família como uma família em que não se falava de amor.
Talvez falasse, eu é que não compreendia. A culpa era minha. Ultimamente tive dois grandes golpes com a morte de dois irmãos. O João veio aqui despedir-se de mim. Ele sabia que ia morrer. Tivemos uma conversa de horas em que falava de meia em meia hora, uma frase. Dissemos tanta coisa. O outro meu irmão, Pedro, o único de nós que era moreno... Era muito bonito, o Pedro. Quando eu estava com um cancro, ele ia visitar-me e sacudia-me enquanto dizia: “Não me morras”, com os olhos cheios de lágrimas. Claro que há amor entre homens.
Este livro, além da tentativa de compreensão entre um pai e um filho, parece a tentativa de entendimento entre um homem e o seu país.
Da minha parte, não. Compreender o quê? Gosto muito das pessoas do meu país, gosto muito dos portugueses.
Acha que Portugal já é capaz de falar da Guerra Colonial?
Não sei responder. Provavelmente já esqueceram. Foi há tanto tempo. Mas para mim é uma experiência pessoal. Perdi quatro anos de vida no Exército.
Se eu tivesse recados a dar, dava.
Quando escreve: “Sinto nos vossos semblantes a alegria de irem servir a Pátria...”
Ahh, isso foi um discurso que ouvi quando estávamos para embarcar. Agora, será que o general na altura pensava mesmo isso? Duvido.
Claro que não, mas gosto de ser português e gosto muito do meu país.
Não lhe passou pela cabeça não ir à guerra?
Não, porque pensava que a ditadura era eterna e não me imaginava a viver fora de Portugal.
Quando pensa nesse rapaz que esteve lá, com vinte e poucos anos, como olha para ele?
Quem, o António?
Sim.
A minha relação comigo é pouco pacífica. Não olho para esse António jovem porque não o vejo. Vejo outras pessoas. Estou dentro dele. Não estou a tentar fugir a nada, as pessoas têm direito àquilo que escrevo, uma vez que escrevo e publico, mas não têm direito a mim. Quando comecei a publicar, toda a gente me dava pancada. Sempre me estive nas tintas, mas sabia que tinha razão [cerra os dentes, fecha a mão com força]. E depois a reputação começa a chegar de fora para dentro, com as críticas no estrangeiro.
Acha que foi maltratado pela crítica em Portugal?
Não sei. A Memória de Elefante é de um menino, não é? Estou tão longe daquilo! Acho que vai em 36 ou 37 edições. Um destes dias ia almoçar e levei o livro e gostei, apesar de estar cheio de ingenuidade.
Esse e os que se seguiram marcaram uma geração, chegou a dizer “O Antunes pega-se”. Muitos assumem uma herança.
Pois, aquilo de escrever à Antunes. Sempre foi assim, e acho que continua a ser assim. A gente olha à volta e tudo escreve à Antunes aqui.
Como?
Quando conversava com José Cardoso Pires...
É difícil separar as razões porque gosto dele. Acho que o Zé é um bom escritor, mas também acho que a Agustina é uma boa escritora.
Disseram maravilhas da Sibila.
Isso foi muito antes.
Agora fiz um prefácio para um livro dela e deu-me prazer. Eu gostava muito dela. Tinha tanto humor. “Gosto tanto do meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia”, dizia. E as dentadas que dava aos outros escritores. “Ó Saramago, você devia fumar”, “Porquê, Agustina? Fumar faz mal”, perguntava-lhe ele. “Escrevia menos!” Tenho cartas dela tão giras! Um charme e um sentido de humor! Uma mulher de quem os homens têm medo. Era muito inteligente e com talento a dar com um pau. Por exemplo, a Fátima [segundo nome da escritora Maria Velho da Costa], que era do Partido Comunista mas usava anel de brasão, tinha uma admiração imensa pela Agustina. Tenho pena de que a Fátima nunca mais tenha publicado. Conheci-a no Hospital Miguel Bombarda. Tive um processo disciplinar em Santa Maria, tinha tratado mal um assistente, e o director de serviço disse que era melhor eu concorrer ao Bombarda para evitar o processo. Fui e a Fátima estava lá. Era licenciada em Letras, mas estava a fazer a tese de doutoramento, chamada Trabalhador, Doente Mental... Fui colocado na enfermaria onde ela estava. Tinha grande sentido de humor, e uma força! Gostava daquela pessoa que andava pelos corredores a cantar canções do Roberto Carlos [e começa a cantar], “comigo aconteceu gostar da namorada de um amigo meu”. Pensei, bolas, afinal há escritores normais.
Nem numa coisa nem noutra.
O que lhe interessa num escritor?
Há muito poucos escritores de que gosto. Tenho escritores de quem sou muito amigo. Muitos espanhóis. O Amos Oz, por exemplo. E tenho dois grandes amigos espanhóis, o Javier Marías e o Juan Marsé. Estes são mesmos amigos, e depois não sei se gosto deles por isso ou se são bons.
Ele agarrar-me pelos tomates.
Reli o prefácio que escreveu para O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, e falava de encantamento.
Gostei muito desse livro. Tem uma prosa de cristal de rocha que é muito difícil. Escrever é muito difícil, acho e pasmo com a quantidade de escritores que há por todo o lado. Por isso também não vou quase a parte nenhuma. Ao estrangeiro já não vou. Mas as pessoas têm sido muito generosas para mim nos outros países.
Aqui não?
Aqui não sei. Não leio jornais, não vejo televisão. E se quer que lhe diga, é-me indiferente. Quer dizer, escrevo em português e é para os portugueses que escrevo, mas como não me vêem em parte nenhuma...
Que leituras fez enquanto escreve, não lê nada?
Leio cada vez mais os mesmos livros. De escritores que gosto e que são muito poucos. O Balzac continua a espantar-me. Que grande escritor! Quem é que eu leio mais? Do século XX francês há dois que me interessam: Céline e Proust. Mas Proust está todo bebido em Saint-Simon. Dos americanos, dizer o Faulkner é lugar-comum. Gosto muito de Scott Fitzgerald, gosto do Hawthorne. Pynchon não me interessa nada... Um livro que não tem charme não é bom.
O que faz o charme do livro?
Se a gente soubesse! A minha mãe dizia que o que um homem podia ter de mais sensual era a inteligência, mas depois acrescentava com desgosto: não há nada mais estúpido do que um homem inteligente. Ela tinha razão. Eu faço coisas tão estúpidas. Olhe a minha vida! Escrevo de manhã à noite.
Não tem a vida que queria?
Tenho, ninguém me obrigou a isto, mas é a vida que eu posso ter. E sinto-me culpado se não escrevo. Agora estou sem escrever. Estou à espera de que me entreguem o livro batido. Depois, a revisão faço em 15 dias. Não vou fazer nada de estrutural, mas estou a pensar, por que motivo a gente gosta de um escritor e não gosta de outro ou gosta de uma mulher e não gosta de outra. Quando estava aqui com o João no dia em que ele veio despedir-se, ele viu um livro do Marcel Pagnol, um escritor de quinta ordem. E ele só disse uma frase: foi a nossa infância. Quando tínhamos 12 anos, comprávamos aquilo. Muitas vezes íamos a pé para o liceu para poupar para comprar livros.
Trocavam livros um com o outro?
Não. Como tínhamos praticamente a mesma idade, gostávamos das mesmas coisas. Na Praia das Maçãs havia uma tabacaria que vendia livros de bolso e íamos descobrindo escritores ao mesmo tempo. Tínhamos 14 anos e apareceu o Sartre e toda essa literatura má. Camus tem coisas boas. Eu devia ter 13 ou 14 anos e o meu pai tinha uma segunda edição de Mort a Credit [Morte a Crédito], do Céline. Foi um deslumbramento, e escrevi-lhe uma carta, que enviei para a Gallimard, e ele respondeu. O envelope onde ele tinha escrito o meu nome andou anos no meu bolso.
O que dizia?
Eu dizia-lhe que era escritor. Eu já tinha uma alta opinião de mim mesmo. Só escrevia merda, claro. E ele perguntava, “Queres ser escritor com 13 anos? Aproveita para brincar, para estudar”, uma carta tão terna. Perdi o envelope e tive um desgosto tão grande. Depois fui ler os outros livros dele.
Um homem com uma biografia complicada.
Quem não tem? Mas é um grande escritor. O Proust também foi um amor à primeira vista. A minha mãe era das poucas mulheres que conheci que leram o Proust inteiro. E o meu pai lia-nos muito. Quando um estava doente, adoeciam todos, e ele sentava-se na cama de um de nós e lia. Lia Flaubert, que eu achava uma chumbada. Vou-lhe dar uma imagem do Cocteau: parece-me uma preta que adormeceu no banho cheia de jóias falsas. Era assim que ele retratava Veneza. O Dante tinha 1500 palavras, o Flaubert, que toda a gente achava que tinha léxico riquíssimo, tinha 12 mil, hoje qualquer adolescente português tem 17 mil, e olhe o que escrevem! E há outros escritores, que muita gente considera menores, por exemplo Gautier [Theophile Gautier]. Uma vez levaram-no as ver As Meninas, do Velázquez, e ele ficou a olhar e depois perguntou: “Onde é que está o quadro?” Há alguma maneira mais bonita de descrever aquele quadro? Ou a reacção do Papa Inocêncio XII quando Velázquez lhe pintou o retrato, “tropo vero”. O Inocêncio quis dizer que o Velázquez tinha posto ali Papa a mais. Quando perguntaram a Dali qual o melhor pintor, ele respondeu “Velázquez, siempre Velázquez”. É único. E o único que aproximo dele é Vermeer. A gente põe a fasquia um bocado alta. Como alguns poetas, noutro dia estava a reler alguns poetas americanos do século XX de que gosto muito, o Wallace Stevens... Sei tantos poemas de cor.
E frases dos seus romances, sabe algumas?
Não, mas não chamo romances àquilo que faço.
Há quem lhes chame sinfonias, que a preocupação é mais a forma e menos o enredo.
[risos] Não sei. Escrevo da maneira que sei, e que foi conquistado devagar. Fui aprendendo. Não é uma questão de vaidade, porque não somos autores do que fazemos, mas acho que ninguém escreve assim.
Não, mas é evidente. De que vale ter vaidade? Vou morrer.
É por achar que ninguém escreve assim que acha que merece o Nobel?
Nem penso nisso.
Não acha que merece o Nobel?
O que é que isso quer dizer?
Isso mesmo.
Este ano ligaram-me da agência em Barcelona a dizer que receberam um telefonema, que eu ia ganhar. Uma hora depois voltaram a ligar-me a dizer que tinha havido uma reviravolta. Eu nem pensava naquilo. Já ganhei tudo quanto havia.
Mas não o Nobel.
Ahhh, depois vieram cartas, três da Alemanha e de pessoas que eu não conhecia, com artigos que já estavam prontos para sair em jornais alemães. Isto é tudo idiota, não é? Depois ganhou aquela merda! [Kazuo Ishiguro]
Nada.
Gosta do Dylan músico?
Gosto.
E da poesia dele?
No Auto dos Danados, em que há um poema dele na epígrafe. Não ouço música há muito tempo. Mas gosto mais das Variações Goldberg.
Este não tem epígrafe, mas quase se pode falar de epílogo: “Foi apenas isto senhores, a alegria de irem servir a Pátria, foram os pretos que a polícia política obrigava a abrir a cova para lhes fazer saltar a cabeça lá de dentro, para os ver pular contra as paredes de terra até se imobilizarem por fim, foram os choques eléctricos nos testículos, foi a broca do dentista num dente são, foram os palitos sob as unhas, foi o psicólogo no círculo de cadeiras do hospital...”
Ouço-a a ler isso e confirmo que gosto. Isso vem de zonas fundas dentro de mim. Posso pensar a propósito no Victor Hugo ou coisa assim. Um tipo que escreve “O sonho é o aquário da noite...” é muito bom. Ou “A sombra é sempre negra mesmo quando cai dos cisnes”. É uma felicidade de mão!
Tem esses momentos de felicidade quando escreve?
Neste último livro estava com a mão muito feliz, porque pela primeira vez me pus a ler. Acho que está bem equilibrado.
Tem medo de que lhe aconteçam romances maus?
Acho inevitável. Mas se continuar a escrever assim, meu Deus!
Não tem fúrias com uma crítica má?
Não. Em Portugal não leio. Se o Zé [Cardoso Pires] me tivesse dito, “este teu livro é mau”, aí ficava à rasca.
Não. O Zé estava convencido de que eu era um génio.
O que é um génio?
O Stendhal usava a palavra génio para descrever uma mulher a subir para uma carruagem, que tinha génio.
Sempre tive. A minha mãe dizia que sim.
Acaba de publicar um livro, tem outro feito. E agora?
Estou contente com estes últimos. Este acho do caraças, o outro é melhor ainda. Agora não tenho nada dentro de mim.
O que é que faria? Leio, mas depois se não escrever que sentido faz? Disso tenho muito medo.
Mais do que escrever um mau livro tem medo de não escrever?
Nunca fiz maus livros. Podia ter feito, mas nunca fiz. Também cheguei sempre muito tarde às coisas.
Escreveu quase 30 romances.
Menos. Há alguns de crónicas, uma estupidez, nunca mais vou publicar essas coisas.
O que é que falta?
Qualidade [gargalhada]. Aquilo são coisinhas. Quando me sento, nunca sei o que vou escrever, assim umas coisas levezinhas.
Ou outras menos leves. Tem escrito sobre coisas íntimas, a morte dos seus irmãos, dos seus pais, a doença.
Era inevitável. Estava a sofrer muito e estava com saudades. É bom gostar das pessoas. Durante tantos anos tinha tanto medo. Acho que só comecei a aprender a gostar dos meus pais depois de eles não estarem cá. Por parvoíce. Mas com o tempo a saudade aumenta. É isso que penso, o que é que interessa ter feito isto?, eu vou morrer.
Isto fica?
Mais tarde ou mais cedo desaparecerá. Às vezes tenho a impressão de que estou a escrever contra a minha morte. Não sei, Isabel... Não sou triste. Sou calado, mas não sou triste.
Não perdeu o sorriso em África, como uma das suas personagens?
Isso está aí? Que engraçado. Quando li, não estava a ver nada disso. Estava só a ver se a música estava bem. Dentro de mim isto está muito associado à música.
Lê alto?
Como fazia o Flaubert. Ele fazia bem, a fazer troça de desenhos animados [imita vozes]. Se o livro resistir, é porque é bom. Ler a fazer troça do livro. Gostava de fazer livros bons, mas isso já faço. Agora queria chegar mais longe, não sei se sou capaz. Duvido.
Público/Ípsilon
10.11.2017
texto de Isabel Lucas
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