Entrevista ao Diário de Notícias: «Matou alguém na guerra? "... Vamos passar para a pergunta seguinte"»

Diário de Notícias
entrevista de João Céu e Silva
12.11.2017


Ao 29º romance, António Lobo Antunes regressa à guerra Colonial. O filão literário que lhe deu fama logo ao primeiro romance. Uma entrevista em que até diz qual o seu livro de que menos gosta.

foto de Reinaldo Rodrigues/Globalimagens


Há muito que não se via o escritor António Lobo Antunes colaborar tanto na promoção de um seu livro como está a acontecer com Até Que as Pedras se Tornem mais Leves que a Água. É o seu mais recente romance, que, a exemplo de meia dúzia dos anteriores, está sagradamente pronto um ano antes e sempre com saída marcada para cada outubro de modo a entrar na grande corrida das vendas de Natal. E diga-se que não está a ser pouca a ajuda do autor nesta divulgação, que a editora agradece, pois nem sempre está para aí virado, contentando-se com uma ou outra entrevista tirada a ferros. Desta vez, colabora e não é pouco na publicidade do romance novo, e vêem-se resultados, pois nesta semana já chegara ao décimo lugar das tabelas da principal cadeia de livrarias portuguesas.

Daquilo que António Lobo Antunes já falou sobre este romance, sente-se a preocupação em passar uma mensagem eficiente e própria para o seu regresso literário à temática de África e da Guerra Colonial, mesmo que até hoje sempre tentasse recusar tocar no assunto que fez da sua primeira publicação em livro, Memória de Elefante, um sucesso raramente repetido em toda a carreira - o facto é que ultrapassou as três dezenas e meia de edições até hoje.

Mesmo que continuando a negar que se tenha afirmado enquanto autor com essa narrativa de uma guerra que no pós-25 de Abril precisava de ser exorcizada - fá-lo nesta entrevista -, é certo que António Lobo Antunes escreveu outras histórias de guerras, num estilo polifónico que surpreendeu os leitores fiéis e os novos, que atraiu sem receio de se perderem numa linguagem nova como era a sua. Entre esses regressos à guerra sob a forma do romance, ou das crónicas, que, diz, só escreve por dinheiro, está um dos seus pontos altos: Fado Alexandrino, um romance escrito para o pai, que nunca lhe dera o estatuto de escritor enquanto não saísse da torrente de palavras como era o inexcedível Os Cus de Judas e criasse um universo mais clássico.

Este retorno a África surge ao 29.º romance, depois de ter aflorado o cenário em Comissão das Lágrimas, e após ter publicado um dos melhores trabalhos da sua carreira, Sôbolos Rios Que Vão. Se a guerra era o seu tema de eleição e lhe dera fama, nos últimos anos voltou a mudar de rumo - fizera-o após Exortação aos Crocodilos -, e deu início ao ciclo do "ouriço". Ou seja, o do bicho mau que tem matado amigos e familiares: cancro.

Não será por acaso que esta doença dominou o imaginário do escritor, é que António Lobo Antunes passou por isso e revelou publicamente tudo o que sofreu física e psicologicamente. O mais recente abalo foi a morte do seu irmão João [Lobo Antunes] pelo mesmo motivo. E para evitar um retorno à cama do hospital, mantém um controlo médico periódico de modo a não voltar a ser apanhado de surpresa pelo cancro. É uma questão de sofrimento próprio que nunca o abandona, como se pode ler nesta longa conversa mais adiante.

Voltando ao seu mais recente romance, pode afirmar-se que a recordação do tema da Guerra Colonial foi uma quase surpresa, com um efeito literário garantido, pois são muitos os fãs da África que pintou no início. Não executa este regresso sem estardalhaço, visto que o escritor fez questão de revelar uma situação nunca antes sabida, a de que alucina durante a noite frequentemente com o que viveu em Angola; que é solidário com os que sofreram e pelos "príncipes" que comandava; que acorda a pedir uma metralhadora G3 para se defender dos turras, bem como de outros momentos de stress pós-traumático que o próprio jamais acredita que vá ultrapassar, como referirá. De uma penada, o discurso que acompanha este novo romance seduz os leitores com a promessa de um retorno ao tema que o imortalizou, num tempo em que o novo amigo José Cardoso Pires era um exemplo da escrita e o futuro Nobel José Saramago estava a despontar para ensombrar toda a classe de escritores por décadas. Uma catalogação que o autor não aceita, fazendo questão de referir que fora de Portugal "nenhum país me associa a um escritor da guerra".

A mensagem que António Lobo Antunes escolheu para ajudar a promoção do seu novo livro tem estado muito presente em entrevistas recentes, diminuindo-se essa carga de pesadelo noturno nesta para evitar (re)repetições, no entanto, não se deixa de a registar porque permite entender a origem desta obra. Afinal, como se perceberá, a "África portuguesa" está no sangue do autor e, mesmo reinventando o argumento desta vez, o leitor vai senti-la bastante presente nesta narrativa.

Quanto a Até Que as Pedras se Tornem mais Leves que a Água, há que dizer que só não se lê de um fôlego porque tem 443 páginas e a história - desta vez existe uma história - é reelaborada até que, parafraseando o título, as pedras se tornem água de tanto serem moídas e o tema fique esgotado. Não será a obra-prima como ainda é, por exemplo, As Naus, mas tem a vantagem de regressar à literatura sobre a Guerra Colonial. O que faz falta, porque os escritores portugueses tem sido pouco esforçados no tema Guerra Colonial.

A grande novidade é ter logo de entrada uma "sinopse" de duas páginas que explica ao que se vai neste livro. No entanto, talvez não seja este o livro que levará a Academia Sueca a conceder finalmente o almejado segundo Prémio Nobel para a língua portuguesa.

foto de Reinaldo Rodrigues/Globalimagens


A entrevista começa com uma pergunta do próprio escritor: "Chegou ao fim disso [do romance]?"

Sim, li princípio, meio e fim... Há duas frases que resumem - ou não - o livro: "Como era África, pai?" e "quase não ficou nada na memória". É verdade?
Não sei se é verdade porque ficou-lhe tanta coisa na memória...

É o que transparece.
Há muitas coisas que esqueci e outras que fiz o possível por esquecer... A escrita foi terrível porque as minhas noites passaram a ser horríveis. Acordava a meio da noite a exigir uma arma e depois nem sabia onde estava e ficava com medo de mim. Cheguei a andar de gatas e a dar por mim à volta da cama de madrugada porque estavam a cair [disparos]... Nunca tinha tido isto desta maneira. Foi tão intenso escrever aquilo. É dedicado a dois camaradas [Zé Luís e Zé Jorge], oficiais espantosos, de uma grande humildade e coragem. Os portugueses são extraordinários! Lembro-me de um oficial cubano que nunca tinha visto soldados como os portugueses. Rapazes. É engraçado, nunca ouvi a palavra coragem e quando falavam de um homem corajoso nunca diziam assim: era um homem duro. O alferes Zé Luís era um homem duro, o maior elogio que se podia ouvir. Vi só um acto horrível de cobardia, mas esse era um cobarde.

Essa caracterização de cobarde aparece uma vez no livro. Não podia deixar de o registar?
Acho que não falei nesse rapaz. Esse episódio deve ser o de um oficial que se meteu debaixo da viatura e aquilo ficou sem comando - ele era cobarde, mas também... Ontem fui ao médico, que me falou do final do meu irmão João, que sabia que ia morrer. E disse "pois, mas tenho umas coisas para escrever"... Ele veio aqui despedir-se de mim e nunca usou a palavra morte. Nunca. Uma valentia! O espetáculo da cobardia é nojento, mijam-se. Estou a lembrar-me do segundo comandante a tirá-lo debaixo da Berliet ao pontapé e ele a chorar e a borrar-se e os rapazes ficaram sem comando.

Não gosta de usar a palavra cobarde?
Não gosto e eu tinha medo que me fartava.

Como disfarçava. Ou não disfarçava?
Tinha muito medo antes de começarem as castanhas. Éramos bombardeados a partir da pista de aviação, começava com aquilo que os soldados chamavam a "costureirinha" - uma metralhadora tac tac tac - e depois vinham os morteiros e era um descanso porque a tensão desaparecia. Mas lembro-me de o Ernesto Melo Antunes andar com uma lâmpada no meio daquilo e eu uma vez dizer-lhe "ó Ernesto, assim é um alvo muito fácil". E ele fez um silêncio e respondeu: "Sabes, é que às vezes apetecia-me morrer." Lembro-me de estar no aquartelamento e começamos a receber umas chamadas de rádio desesperadas de um pelotão que estava a ser atacado e este gajo mete-se numa Mercedes com meia dúzia de rapazes e vai lá. É de uma coragem admirável! Portanto, todos os dias tinha exemplos de dignidade, mas acho que no livro está referido um homem que agarrava nas prisioneiras novas, miúdas às vezes, e de pé em cima do caixote... Foi o único que eu vi, quando contei ao capitão, o Ernesto disse: "Devias-me ter dito isso." Não sei porque é que o livro saiu assim. Eu não queria fazer um livro sobre a guerra, porque isso não é, mas sobre a condição humana numa situação limite. Parece-me.

São duas vozes constantes, lá e cá...
Aparece a vida em Portugal?

Sim.
Durante um tempo continuei lá e, em certos momentos da minha vida, ainda estou lá. Não queria fazer um livro sobre a guerra de África, não era isso. Interessava-me uma relação entre dois homens. Nem sei bem o que me interessava, sei lá, exorcizar mais uma vez uma série de fantasmas. Acho que só me tornei homem depois disso. E os soldados tinham 20 anos e já eram homens. Os portugueses são admiráveis, gente muito pobre, muitos nunca tinham usado sapatos e não se queixavam de nada. Para uma pessoa que quer escrever é muito importante ter uma experiência assim tão radical, o preço é que é muito alto. Os milhares de pessoas que continuam nas consultas de stress, com problemas de vária ordem. Não me lembro do que escrevi, mas lembro-me de uma carta em que dizia "isto está a dar cabo da minha juventude, da minha idade de homem e vai dar cabo da minha velhice". Isso aconteceu a todos. Os meus dois avôs eram militares e estiveram na Primeira Guerra Mundial - um foi gaseado - e não falavam disso. Só sei porque a minha mãe deu-me o diário que o pai dela escrevia e que só conheceu muito depois. Ela também nasceu quando o pai estava na guerra.

Escrever "quase não me ficou nada na memória" é uma figura de estilo?
Às vezes o que fica é uma névoa. Lembro-me de que a alimentação era péssima mas não sei o que comia. O pão era feito lá, mau, mas o resto é como um sonho. Lembra-se do [Joseph] Conrad quando no Coração das Trevas por várias vezes a pessoa que relata diz "parece que estou a contar um sonho". E acaba por adquirir as dimensões de um sonho. É engraçado, aparecem os cheiros.

Quando acontece o 25 de Abril todo o esforço de guerra torna-se também um sonho. Os soldados vêm-se embora e entregam tudo. Concorda?
O 25 de Abril aconteceu porque havia a guerra e os oficiais do quadro permanente estavam dois anos lá, um ano cá e era insuportável. Havia um capitão no meu batalhão que estava na quarta comissão, já não podiam mais. Tinha 44 anos e parecia 70. A cabeça toda branca. O Ernesto estava na terceira comissão. A vida deles foi muito complicada.

Não acha que cruzaram os braços demasiado à pressa?
Isso não foi decidido pelos militares mas pelos políticos, mas também a partir da altura em que se proclama a independência já ninguém queria combater. Eu vim em março de 1973, estava a começar o Movimento das Forças Armadas, que começou por ser uma reivindicação salarial. E a quantidade de sequelas tenebrosas que ficaram, além das coisas físicas, os casamentos. Era muito difícil e ninguém vem de lá bem.

Fala de muitos mortos neste livro e de quem mata. Alguma vez matou alguém na guerra?
... Vamos passar para a pergunta seguinte...

Vamos. Este seu regresso a África é mais autobiográfico do que nos primeiros livros?
Não, esses são muito maus. Memória de Elefante, Os Cus de Judas. Este é um atirador e eu não era, nem tinha de sair para a mata como ele. Correu mais riscos porque eu era médico, embora haja episódios a que assisti.

Num romance anterior, Comissão das Lágrimas, trata da Angola pós-25 de Abril...
Esse era sobre a questão do MPLA, completamente diferente e à qual não assisti. Arranjaram aquele pretexto do Nito Alves. O nome Comissão das Lágrimas foi dado pelo povo angolano, mas não gosto de falar muito nisso porque tenho por uma parte dessas pessoas da comissão muita estima. Angolanos. Era evidente que havia uma grande luta pelo poder por trás daquilo. Isso conheço de ler. Não sei, eu queria fazer boa literatura com este livro - e com os outros.

Neste livro há duas palavras constantes: amor e mata. Qual a razão?
Mata, de floresta?

Mata de matar.
O mata mata era uma expressão que se usava muito quando não se estava a matar, mas a mim dói-me mais a recruta para os oficiais em Mafra. Como escritor - talvez não tenha direito a este título -, o que me interessa é chegar cada vez mais longe. Escrever é muito difícil. No fundo a guerra aí, como nos outros livros, é um cabide para pendurar os romances. Não se pode conotar este livro com um de guerra, tem mais pretensões. O que me interessava desde que me conheço era escrever. Quando comecei com 6 anos não tinha vivido nada e quando vi um cadáver pela primeira vez foi uma surpresa.

Se tiver "direito ao título" de escritor. Ainda duvida ao fim de 29 romances?
Eu sempre o quis ser desde que me conheço. A minha mãe ensinou-nos a ler e comecei logo. Fazia romances de uma página, anos e anos, depois só poesia, e aos 16 percebi que não tinha talento.

Voltemos às palavras "amor" e "mata". Porque são tão repetidas?
Porque se passa na actualidade. Quando lá estava não pensava na palavra amor nem na palavra mulher. Não tive relações sexuais com ninguém. Tive camaradas que sim, com mulheres que lá havia, raparigas novas. Eu não. Nunca. O Ernesto, que está tão esquecido, dizia: "Agora vamos pôr o caralho na arrecadação porque não vai servir para nada. Os tomates sim." Quando estava no quarto pensava sempre em livros e continuava a escrever. Nada se aproveitou, nem dizia aos meus camaradas o que estava a fazer. Sempre tive muito pudor em relação ao acto de escrever. O primeiro livro saiu quando tinha 36 anos e andou uma série de tempo a ser recusado. Queria não envergonhar quem sempre acreditou em mim e não me imagino a fazer outra coisa. O meu medo é não sair nada. Agora, tenho isto para trabalhar (o novo romance). Ainda vai demorar tanto tempo a afinar. Este saiu com fluidez, mas o próximo está a levar tanta pancada. Não era a guerra, África, mas a relação entre aquele pai e filho. Uma história de amor porque o filho gostava muito do pai. A matança do porco é horrível porque o porco tem um gritar humano. Eu quando estou a escrever penso muito pouco, sou um animal, e aquilo sai com mais ou menos dificuldade. Na primeira versão estou logo a ver as emendas porque é tão distante daquilo que se quer.

Critica os que ficavam nos gabinetes.
Eram as pessoas de Luanda que apareciam sempre com camuflados novos e os nossos todos desbotados. O cheiro de Angola, as cores... Para o fim, era delegado de Saúde por inerência e para receber mais uns dinheiritos tinha de fazer autópsias. Uma vez desenterrou-se uma pessoa que estava morta há três meses e eu estava a comer uma sanduíche. Ficavam muito espantados, mas era a melhor maneira. O furriel espetou a ponta de um canivete na barriga inchada e foi um vapor nauseabundo. E na parte final vi a PIDE a enforcar um gajo que tinha ido comprar umas coisas a uma cantina de outra fazenda.

Contesta muito a PIDE neste livro.
A PIDE só tinha um medo da polícia da Diamang. Uma vez fizemos uns prisioneiros e vieram uns pides. Um deu logo um pontapé na barriga de uma rapariga grávida, era tudo muito violento mas a violência era aceite. Fui o único que torturou um pide, feriu-se e cozi-o sem anestesia. O gajo gritava como um danado com a água destilada, que dói para burro, e dizia-lhe: "Está para aí a chorar e eu a dar-lhe anestesia." Deu-me prazer porque estava tão zangado. Olhe lá, estamos só a falar de guerra e não me apetece dizer mais nada...

É disso, no entanto, que o livro trata.
Acha que sim? Eu digo aí coisas diferentes d' Os Cus de Judas.

É outra narrativa, diferente desse ciclo.
Mesmo que um livro esteja a correr bem, essas memórias voltam. Porque nunca nos abandonam. Mas há coisas belas, noites ilimitadas, horizontes sem fim, sensualidade. Tudo era grande.

Vamos então à oficina do livro.
É a única coisa que interessa.

Faz uma coisa nunca vista em si, uma sinopse nas primeiras duas páginas...
Um parêntesis, caí na armadilha e estive a falar da guerra, mas não era isso que interessava neste livro. Era levar mais longe o que tenho tentado fazer. Acho que agora posso fazer livros melhores e não tenho dúvidas de que a crítica em vários países, que tem sido hiperbólica, em nenhum me vai associar a um escritor da guerra. Os livros anteriores são diferentes. Tenho gostado deles, mas queria levar mais longe a língua. Não escrevo histórias.

A partir de O Meu Nome É Legião tem mudado o rumo da obra...
Não dei por isso. Queria estar mais perto do coração do coração.

No Caminho como Uma Casa em Chamas...
Esse é, provavelmente, o livro menos bom que fiz.

Mas já não pode dizer isso do Sôbolos Rios Que Vão, que é dos melhores...
Não sei classificá-los assim. De que livros gosto? De todos ou não os publicava. Acho que estou a escrever muito mais como quero. A partir de Da Natureza dos Deuses (o antepenúltimo) as coisas mudaram - sei que não tenho muito tempo - e a escrita tornou-se mais experimental. O próximo é difícil de ler, tenho de o tornar mais claro. Vai chamar-se... Não publique o título ou roubam-me. Tem havido uma evolução naquilo que começou com Memória de Elefante. Li-o há uns tempos e gostei, mesmo que pareça escrito por outros, um antepassado meu. Ou então vamos tendo outros eus. Há uma coisa que me alegra, ninguém escreve assim, mas não estou certo de ser eu que faço...

Quando diz que está noutra fase...
É um continuum, mas penso que há alterações mais claras aí.

Já não está a escrever o mesmo livro?
Estou e não estou. O mesmo livro? O autor é sempre o mesmo e a minha vida fica sem sentido se não faço isto. Vêm fantasmas pouco agradáveis.

A morte tem vindo a cercá-lo...
O quê?

Com a morte dos seus irmãos...
E com as doenças que tive...

As últimas notícias [exames] são boas?
São, mas provisórias. Dura até abril.

Já não tem medo de...
Morrer?

De o cancro voltar?
Pode sempre voltar ou não fazia exames periódicos.

Quem os decide fazer?
Eu. Estive [na terça-feira] no serviço de Oncologia e vou sempre à sala da quimioterapia. Ainda me comove a coragem das pessoas que ali estão. Soube de coisas nesse dia pelo médico que viu o meu irmão João e fiquei a saber da sua coragem. Nunca me falou da morte e estávamos horas juntos. Era uma frase de meia em meia hora. Foi uma despedida de uma grande intensidade e tenho muitas saudades dele. Antes dele morreu o Pedro. O mundo fica tão despovoado quando as pessoas de quem gostamos morrem. Tenho uma relação muito forte com os meus irmãos, há um mais novo que conheço mal, era pequeno quando nós saímos. Gosto muito dos meus irmãos, mas vou-os perdendo e a vida começa a ter outro sentido... O meu pai sofria muito por não ter talento; desenhava muito bem, escrevia bem, mas não era criativo. A mim aconteceu isto, é a única coisa que me interessa. Também não sei quanto tempo vou estar cá. Vamos falar de literatura porque isto não tem interesse.

Tem aqui cinco maços de tabaco. O que que significa a palavra vida, então?
Não vou fumar isso tudo hoje, vou fumando. Comecei aos 12 anos com cigarros que roubava à minha mãe. Dá-me prazer e quando estou a trabalhar diminui a ansiedade. Acordo às seis, mas é tão difícil encontrar as palavras certas. Também é a única coisa que faço além daquelas coisinhas (crónicas) que não têm nenhuma pretensão. Estupidamente, publiquei três ou quatro coisas (recolhas) daquelas crónicas, mas acabou e aquelas vão sair do mercado. Já disse à editora. Faço-o pelo dinheiro.

As crónicas não distraem os leitores dos seus romances?
Sim, mas aquilo não tem valor literário. Onde eu jogo a vida é nos romances.

Tem aqui três isqueiros do Benfica...
Não me interessa nada o futebol. Foi um amigo que me deu cinco isqueiros nos meus anos. Todos diferentes.

Para lhe avivar o amor ao Benfica?
Quero lá saber do Benfica. Não vejo jogos, nunca mais fui ao estádio.

Porquê?
O fundador do Benfica era o grande Cosme Damião, um homem que tinha a quarta classe e que morreu cedo com uma tuberculose. Vivia numa casa muito modesta e fazia de tudo. Dizia que no dia em que o Benfica se tornasse um clube profissional acabava. Depois, quando se vê esta sujeira de empresários, isto e aquilo e do dinheiro que deixou de ter valor. O Benfica nasce de uma vontade do povo. Era impensável que o Águas ou o Coluna fossem jogar para outro lado ou que o Travassos viesse jogar para o Benfica. Havia um amor genuíno ao clube. Agora não, com estes presidentes, mediocridade e coisas que não me parecem sérias. Não sei se são ou não, mas não me parecem. Quero lá saber desses mercenários de merda.

Ainda tem o Ronaldo...
Não me interessa.

Voltemos ao livro e ao porquê de fazer uma sinopse no início. Não é difícil dizer tudo e levar o leitor até ao fim?
Se o segurarmos pelo nariz, ele vem. É curiosa a mistura de modéstia e orgulho dos grandes escritores. Estou-me cagando para a crítica, agora só me dão cinco estrelas por todo o lado. O que também não quer dizer nada.

"Perde" tempo a ler os autores portugueses contemporâneos?
Perco. Gosto de ler o Fernão Lopes, Matias Aires, o século XVIII é muito bom.

Os seus contemporâneos não chegam até ao século XXI?
Não conheço bem, não posso falar. Começo a ler e não agrada, não têm ofício.

Ignora o politicamente correcto. Abusa das palavras preto, maricas e...
O que é politicamente correcto? Não se chamava maricas aos homossexuais ou aos homens pouco corajosos. Isso nem me passa pela cabeça, e este que é maricas não está na acepção de paneleiro.


12.11.2017
texto de João Céu e Silva

Comentários

artigos mais procurados