Bernardo Carvalho: opinião sobre Exortação Aos Crocodilos
Lágrimas de crocodilo
por Bernardo Carvalho
colunista da Folha de São Paulo
em 29.01.2000
Os romances do português António Lobo Antunes [...] são feitos de frases e parágrafos abortados, que terminam por formar, nessa composição fragmentária de interrupções, uma trama complexa, revelando os sentidos mais surpreendentes.
Ao jogar com uma simultaneidade de tempos, que parece mimetizar os mecanismos da memória num estado ambíguo de pesadelo, essas narrativas contam as coisas mais inesperadas, de repente, escondidas no meio de outras insignificantes. E, aos poucos, por meio desse enorme quebra-cabeças romanesco, o leitor começa a vislumbrar a imagem de um mundo onde a hipocrisia é um dos fundamentos.
Não é uma tarefa simples ou passiva, como a de quem se prostra diante de uma tela de televisão. São livros que exigem uma leitura activa num jogo de combinações em princípio muito nebulosas. São livros que propõem uma leitura inteligente, cuja recompensa é um prazer sempre renovado: um mundo em que podem ser descobertos novos segredos a cada releitura, em retrospecto, a partir do instante em que se conquista a chave final.
Os livros de Lobo Antunes não entregam esse mundo de imediato. Primeiro, abrem apenas frestas, por onde se tem uma visão parcial da realidade narrada. As visões vão se acumulando de maneira entrecortada, são interrompidas justamente no momento em que deixariam de ser visões parciais para se tornar revelações, que são sempre postergadas.
E assim, por diferentes pontos de vista e pela voz de diferentes personagens, vai surgindo gradualmente uma dimensão tão mais real por oferecer várias portas de entrada, uma dimensão enigmática que parece de facto existir por trás das palavras.
Em "Exortação aos Crocodilos", [...] quatro mulheres contam uma história terrível, semeando revelações pelo caminho, enquanto misturam as lembranças remotas, da infância de cada uma, com um passado mais recente, em que servem a um grupo de homens de extrema direita, salazaristas saudosos, que organizam atentados contra a democracia, produzindo bombas caseiras e se encarregando de raptar, torturar e desaparecer com "comunistas".
É possível ver aqui uma referência ao thriller político "Balada da Praia dos Cães", de José Cardoso Pires, romancista português [falecido] em 1998, de quem Lobo Antunes é declarado admirador. A organização integrista clandestina é formada por um general, um dono de hotéis e seu motorista, um oficial da marinha e um bispo. Além das quatro narradoras: a viúva do sócio assassinado do dono de hotéis; a mulher surda do dono de hotéis; a "afilhada" (e amante) do bispo e a namorada obesa do motorista encarregado da confecção das bombas.
Vem a calhar que esse texto seja feito de estilhaços, e que nele o leitor construa a imagem de um mundo por suas impressões fragmentadas. Lobo Antunes é psiquiatra de formação e sua ficção parece mimetizar as ondas cerebrais num estado em que a consciência é dúbia, em que há simultaneidade de tempos e ocorrências, em que não dá para saber ao certo o que é realidade e o que é metáfora. Um estado febril, que só se dissipa com a surpresa final, diante da morte.
Uma narrativa enumerativa, sincopada e progressiva, que vai sobrepondo momentos, factos e objectos da memória, entrecortados pela recordação de outros momentos, factos e objectos numa espécie de processo de livre-associação em que o sentido vem do acúmulo, quando por fim se constata, com espanto, o que aconteceu realmente por trás da nebulosa da memória.
É uma construção narrativa em suspense, já que as frases e parágrafos se interrompem no momento em que estão para dizer algo. "Não diga nada" é, aliás, um dos vários refrões do texto e define não apenas o princípio do comportamento hipócrita e a base dessa actividade terrorista e clandestina que acaba se invertendo contra si mesma, mas também a fórmula da traição e do costume de enterrar os próprios podres às escondidas.
A certa altura, a namorada do motorista lembra-se de quando lhe perguntaram na escola, em criança, o que era a pátria. A que ela respondeu: "São caixas de mármore com pedacinhos de manto, caveiras, coisas mortas", antes de ser corrigida por uma amiguinha, que lhe esclarece que a pátria é "onde a gente nasceu". Lobo Antunes tem outra resposta: a pátria é onde tudo é feito às escondidas, o lugar das traições e da hipocrisia, onde choram os crocodilos.
por Bernardo Carvalho
colunista da Folha de São Paulo
em 29.01.2000
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