Raquel Ribeiro: crítica a Não É Meia Noite Quem Quer
A cerimónia do adeus
Uma mulher, uma longa despedida, triste, sem uma réstia de esperança ou de consolo
Uma mulher, uma longa despedida, triste, sem uma réstia de esperança ou de consolo
Onze romances nos últimos doze anos, mais os livros de crónicas: é este o saldo da produção literária de António Lobo Antunes que agora publica Não é Meia Noite Quem Quer, o seu vigésimo quarto romance.
Se no romance anterior, Comissão das Lágrimas, mergulhava no horror e na violência das purgas do MPLA e do 27 de Maio de 1977, em Angola, neste, o autor regressa a temas que lhe são caros: a doença, a morte e a família (dis)funcional tão portuguesa, tão comezinha, pretexto para mergulhar num romance quase-polifónico que percorre os últimos 60 anos de uma família que é também um micro-retrato do país. Aqui, o autor regressa a tipos-de-personagens que já são comuns no seu imaginário: um pai bêbado, uma mãe semi-histérica (“já viu a minha cruz?”), um “irmão mais velho” que não queria ir à guerra (“que se atirou às ondas para não gramar este frete”), um “irmão surdo” a tentar falar (“o silêncio como o meu irmão surdo silêncio e no fim do silêncio a gravidade com que se encerra um discurso”: “ata titi ata”), e um “irmão não surdo” que veio louco da guerra (“deixávamos-lhe a travessa na mesa onde vinha comer quando ninguém na sala, não podíamos falar-lhe nem vê-lo, tapou a fechadura com papel, não respondia à gente”). Ou seja: histórias em continuum, como se de um romance para o outro pouco se perdesse (ou se ganhasse) com as circunstâncias de cada personagem, histórias de desconforto, confortáveis para o autor (que está no seu elemento, sempre), confortáveis para o leitor que o conhece (porque não o defrauda), desconfortáveis para quem esperava sempre mais.
O romance é dominado por um narrador principal, feminino, uma professora de 52 anos (“se espreito para trás vejo pouquíssimos, espalhados na memória entre triciclos e doenças”), que teve um cancro na mama, perdeu um filho, vive um casamento falhado, refugia-se numa relação lésbica com uma colega na escola e enceta uma longa cerimónia do adeus em três dias, numa casa de praia da família, revivendo a infância, os falhanços, as amizades perdidas e os amores frustrados: “Vim despedir-me da casa ou do meu irmão mais velho e, através dele, de mim mesma, não sei.” É uma mulher a jogar com a memória (a esquecer, a lembrar) e o pai a chamar-lhe “Menina”, como o outro dizia “voar, Celina, voar” (em “Exortação aos Crocodilos”). Nesta despedida, triste, sem uma réstia de esperança (desde o início, o texto empurra-nos para aquele abismo do Alto da Vigia: será que também vai cair?), sem sequer um pequeno consolo, nem no presente, nem no passado, tudo se desfaz, sem consistência, como o pão esfarelado em migalhas pelo pai bêbado à mesa.
Os narradores são quase todos femininos (a mãe, a colega lésbica, a amiga de infância), confundem-se e intrometem-se no discurso da narradora principal. Apenas os narradores de capítulo têm marcas discursivas muito fortes, seja a colega lésbica cujo pai esteve preso durante o fascismo, seja o irmão “não surdo” que tem um discurso corrosivo sobre a sua experiência em África e fala com a velocidade de uma uzi: “Já mamei as duas grades, não mamei e, daí em diante, a pessoa do costume, só que mais feliz, passando a mão cuidadosa no camuflado, gosto deste fatinho, e amarrando um lenço ao pescoço porque lhe faltava a gravata, interrogava em torno quando é que vamos aos pretos, numa das últimas saídas uma metralhadora pôs-lhe as tripas de fora.”
No entanto, no meio de tanto ruído de vozes que se sobrepõem e se obliteram (“se pudesse comunicar em quantas vozes a minha voz se dividia”), é nisto que Lobo Antunes consegue ser igual a si mesmo, e isso é tão bom, arrastando o leitor por uma cacofonia incómoda e depois confortando-o com imagens belíssimas: “No quarto de banho, em bicos de pés para diante, a estender o beiço ao vidro embaciado com uma toalha que prejudicava a nitidez, quando chove durante a noite não apenas um cheiro diferente, a casa diferente perdendo ecos e sons, a chuva entre no sono mudando o argumento dos sonhos, regressamos à superfície e damos conta das persianas, a certeza que nos chamam numa harpa de gotas e afundamo-nos de novo transportando um rastro de música connosco.”
E esta: “ - Como está o rim flutuante do seu sobrinho dona Alice? / a dona Alice com a almofada metade ao léu e metade no interior da fronha / - Uns dias melhor outros pior querem operá-lo de barriga aberta”. E só mais esta: “Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar.”
Isto é Lobo Antunes em “piloto automático” e é (só) por isso que é bom. Por vezes, sente-se que o que aqui está em causa, nestes “estados de consciência”, é, apenas, a imagem pela imagem a assomar-se, a intrometer-se, a aludir ao passado, às ligações do corpo e da memória, mas, por vezes também, repetitiva, entediante, a arrastar as pantufas no quarto da escrita.
Conclusão: o leitor fiel reconhecerá neste romance o imaginário caro a Lobo Antunes e não ficará a perder. Mas ao leitor que ainda não provou deste arquipélago da insónia aconselha-se que comece em 1979 e não pare até ao Esplendor de Portugal. De facto, não é escritor assim quem quer, mas por ser Lobo Antunes não só se poderia exigir mais, mas também melhor.
Raquel Ribeiro
[não datado]
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