Leandro Oliveira: «O gesto de António Lobo Antunes»
Lobo Antunes procura construir sua obra tendo como pilar a proposital e complexa incompletude narrativa
foto de David Clifford |
A pedagogia literária clássica dos séculos XIX e XX ensinou o leitor a caminhar pelo enredo do romance, acompanhando o desenvolvimento de personagens, reconhecendo as fronteiras do espaço na acção, percebendo as nuances na configuração de um drama até [à] sua conclusão chave. O legado deixado é o do leitor que erroneamente vê como sinónimos romance e narrativa. Portanto, nesses tempos em que tanto se discute o fim do romance, é um prazer descobrir a obra de António Lobo Antunes, um escritor que tenta através de sua obra fundar uma nova maneira de percepção do texto em prosa. Isso porque ela representa a mais radical experiência de ruptura dessa estrutura clássica do romance, através do caos de um texto que procurar apresentar uma noção de sujeito na pós-modernidade, tendo como insumo à impossibilidade objectiva de instaurar valores e perpetuar tradições, a angústia do mundo interior do indivíduo e a desagregação de toda ordem – inclusive literária. Nessa tentativa de explorar novas formas do texto literário há ainda um esforço de abolir a expectativa de linearidade, herdada pelo leitor, por meio da polifonia e esse é um dos motivos de seus livros serem classificados como difíceis. Para Mallarmé, “nomear um objecto equivale a suprimir os três quartos de prazer da poesia, que é feito de adivinhar pouco a pouco”. Em Lobo Antunes, o recurso de adivinhar pouco a pouco é evidente, os sentidos são encontrados pela combinação das diversas vozes e pelo modo como são apresentadas, por exemplo quando a repetição circular de uma afirmação traz em si o sentido exactamente oposto, como se o enunciador tentasse convencer a si mesmo daquilo que diz.
A poesia também está presente nos livros de Lobo Antunes pelo modo como a linguagem é utilizada pelo escritor. Tal qual a poesia, a obra de Lobo Antunes parece colocar em primeiro plano a linguagem, tornando-a estranha, e sem, contudo, transformá-la em prosa poética, tal como o fazem alguns autores. A organização rítmica permite à linguagem apresentar-se prazerosa ao leitor e a pergunta a respeito do sentido vem somente após o impacto da beleza do texto. É possível afirmar que a maior conquista da obra de Lobo Antunes é sua prosódia numa linguagem livre da função exclusivamente comunicativa. O gesto faz ressignificar as descrições banais e pensamentos fugidios através da montagem de fragmentos, como peças de um brinquedo Lego, que possui apenas alguns encaixes básicos, pequenos fios entrelaçados, surgindo daí a possibilidade das mais criativas conexões.
Com uma subjectividade marcada pela linguagem poética e enredos montados por fragmentos que vão se alongando por meio da circularidade como são apresentados, tornando as imagens mais discerníveis através da sua recorrência e a revelação de novos detalhes nos múltiplos pontos de vista das diversas vozes narrativas que compõem os textos literários, Lobo Antunes procura construir sua obra tendo como pilar a proposital e complexa incompletude narrativa. Por isso, a tentativa directa de interpretação dos textos ficcionais buscando explicitar efectivamente o sentido que querem dizer, tomando como referência a estrutura e o enredo do romance clássico, seria uma actividade improfícua, dizendo muito pouco sobre o texto, uma vez que o próprio autor rejeita interpretações inequívocas de seus livros. “Não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas: são, somente, símbolos materiais de ilusões fantásticas, a racionalidade truncada que é a nossa. É preciso que se abandonem ao seu aparente desleixo, às suspensões, às longas elipses, ao assombrado vaivém de ondas que, a pouco e pouco, os levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimento e à renovação do espírito” disse o escritor em certa ocasião.
Um texto difícil, com sua polifonia que torna o sentido indefinido, fragmentado, seriam essas as características representativas da literatura desse novo século? Basta pensar nas discussões em torno dos conceitos de modernismo e pós-modernismo. De um lado, uma arte balizada pelo gosto pela transgressão, como retratou Peter Gay, e do outro, como caracteriza Jean-François Lyotard, uma sociedade que perdeu toda motivação ideológica e espiritual para se manter em andamento. A resposta dada pela obra de Lobo Antunes parece ser o meio caminho entre um e outro, dizendo que há mais incompreensão das possibilidades de sentido na multidão de signos que devem ser interpretados e reinterpretados que precisamente falta de esperança. Pragmatismo, iconoclastia, efemeridade de propostas, ideias e acções contraditórias, descentramento e o isolamento do sujeito na obra de Lobo Antunes surgem da incapacidade de narrar do sujeito e não de uma compreensão totalizadora da realidade contemporânea. Desse ponto central é que brilha a liberdade de uma prosa desobrigada a colocar em primeiro plano relações de causa e efeito, revendo a herança de modernidades. Essa é, talvez, a obra que mais radicalmente representa o momento de transição pelo qual passamos, quando vários modelos literários vão sendo abandonados e diversas tentativas de criar outros em substituição vêm surgindo.
Leandro Oliveira
crítico e jornalista cultural
in Pessoa
08.02.2014
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