Folha de São Paulo: «Minha profissão é escrever sem camisinha»

[continuação daqui]

Para Lobo Antunes, que redige seus livros a caneta, criar na tela do computador é como fazer sexo com preservativo

Autor define a criação como momento de angústia e solidão; na infância, apaixonou-se pela obra de Lobato

DE SÃO PAULO
Folhas de papel A4 e caneta esferográfica. É o que basta para António Lobo Antunes escrever os seus livros. Avesso a celulares e cartões de crédito, ele não usa o computador para produzir.
"Gosto de desenhar as letras, de bordar. Ver vidro é como fazer amor com camisinha. Minha profissão é escrever sem camisinha", conta. "Nos dias bons a mão fica a fluir e escreve sozinha." Às vezes saem só cinco linhas em um dia.
Mas escrever, propriamente, não lhe dá prazer, revela ele. "Quando não escrevo me sinto culpado. A criação é um mistério. Há alturas de uma felicidade intensa, mas a maior parte do tempo é angústia. De tentar encontrar a palavra e a música e a cor. Talvez escrever seja a arte dos corantes."
E por que escreve dessa maneira, misturando poesia, prosa? "É a minha maneira. Nunca penso se é poesia ou prosa ou o que for. O importante é que sejam aquelas as palavras."
Seu mais recente livro, que será lançado neste ano em Portugal, chama-se "Não É Meia Noite Quem Quer". "É uma mulher falando o tempo todo. O livro não tinha título. Peguei um verso do [francês] René Char", explica.
Próximos livros? "Sei que precisava de mais 200 anos, mas não sei para escrever o quê. Cada livro é o primeiro. Porque a experiência é como os flutuadores dos hidroaviões. Não servem para nada quando você está no ar. E você está sempre muito sozinho quando está fazendo um livro", desabafa.
Nascido em plena ditadura de Salazar, foi lendo uma fábula de La Fontaine que Lobo Antunes aprendeu o que era democracia. "Tinha um verso em que um cão podia olhar para um bispo. E aqui os bispos é que podiam olhar para os cães."
LOBATO E MACHADO
Na biblioteca do pai se apaixonou por "Saci", de Monteiro Lobato. Lia José de Alencar, Aluísio Azevedo, Raul Pompeia, Machado de Assis. Aos 7 anos viajou pela Europa.
"Fui acumulando experiências de toda a ordem desde muito cedo. Ficava tudo dentro de mim. Aos 3 anos tive uma tuberculose e fiquei deitado numa cama durante um ano. Era um menino horizontal no meio de gente vertical", lembra.
De estudar ele nunca gostou. "Estava sempre procurando tempo para escrever", recorda. Quis fazer letras, mas acabou cedendo à pressão do pai, que o queria seguindo a tradição da família na medicina.
E foi um choque. "Os primeiros tempos eram só cadáveres, cadáveres, cadáveres. Para mim a morte não existia. Era o filho mais velho dos filhos mais velhos. Quando nasci, minhas avós tinham 40 anos. Então os mortos eram senhores de bigode nos retratos", conta.
E essa experiência na medicina foi importante para os seus escritos? "Não. Se tivesse sido engenheiro ou outra coisa teria sido igual. Drummond era farmacêutico", responde. E ele, que estudou psiquiatria, como define esses doutores? "Os psiquiatras são loucos tristes", ataca.
Como médico, Lobo Antunes foi com as tropas portuguesas para Angola, que lutava pela independência.
"É horrível, porque ninguém ganha uma guerra; todos perdem. Foi um desafio a mim mesmo. Aprendi o valor da coragem", afirma.
Na mesma época, do outro lado da batalha, com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), estava Pepetela, hoje escritor como Lobo Antunes. Ambos venceram o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa.
Beirando os 70 anos, como sente o envelhecer? A resposta é inusitada. "Cada pessoa tem a idade com que nasceu. Se nasceu com 20 anos, tem 20 anos; se nasceu com 80, tem 80." E com quantos anos Lobo Antunes nasceu? Ele escapa. "Essa é uma pergunta muito íntima."
Hoje, ele corre regularmente às margens do Tejo -"só o suficiente para ficar bonito".
Está curado do câncer? Sim. Depois de uma pausa, emenda: "Se é que alguém alguma vez fica curado seja do que for. Você se cura de um grande amor? Não sei."


texto de Eleonora de Lucena
19.07.2012

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