José Alexandre Ramos: opinião sobre Explicação dos Pássaros
António Lobo Antunes apresenta: Explicação dos Pássaros
Boa parte dos leitores considera os livros de António Lobo Antunes (ALA) como lugares tristes. É verdade que a sua obra insiste e concentra-se na sua boa parte em situações quase extremas (senão inteiramente) de decadência, seja ela pessoal (psicológica) ou social. É também verdade que as narrações feitas pelas personagens dos seus livros evocam passado e presente (sem apontamento a um futuro, pelo menos um futuro mais promissor) com elementos e factos que, por si, nada têm de alegre ou feliz, chegando mesmo ao ponto de mostrar, em cada um desses momentos evocados, particularidades absolutamente negativas: o escritor relata os episódios de modo a exacerbar os aspectos sombrios da alma humana, como crimes hediondos, o ódio, a insegurança, o desespero, a resignação, a hipocrisia, a doença, a patetice, etc., sem esquecer que na caracterização do ambiente também favorece os cenários pobres, sujos, feios e, em muitos casos, com particularidades kitch. Porém, apesar de toda essa carga negativa que acompanha as suas personagens e ambientes, existe muito humor – negro, dirão, mas de uma subtileza encantadora. Um humor que umas vezes se lê nas entrelinhas, outras muito claro no discurso, recorrendo ao grotesco, à caricatura, à anedota, enfim, ao ridículo das situações das pessoas como marca de um povo ou de uma mentalidade. Assim é Explicação dos Pássaros, uma anedota de circo, em que o autor, após a catarse da sua trilogia inicial, nos oferece um volume onde a mestria e a segurança da mão vem a revelar o grande escritor que é.
Rui S., a personagem central desta história (sim, neste livro há uma história a contar, mas nunca nos moldes tradicionais), é um professor universitário, de meia-idade, oriundo de uma família da alta burguesia portuguesa (poderia ser outra a nacionalidade?), dos finais dos anos setenta. Durante a infância é envolvido pelo pai nas suas actividades extra profissionais inconstantes (o pai, empresário, mudava de passatempo de forma imprevisível e quase neurótica), nomeadamente a ornitologia em que lhe havia prometido explicar-lhe os pássaros e que nunca o fez, reflectindo-se essa falta no seu crescimento, como se essa explicação dos pássaros fosse, na realidade, a explicação da vida, crua como ela é. Crescido, e com vocação cultural e artística que contrariava as expectativas familiares do filho em continuar a actividade empresarial, torna-se então professor universitário da área de História. No período conturbado do imediatamente antes e pós-25 de Abril, Rui S., sensível às questões sociais, sente a culpa da sua origem e tenta filiar-se num partido comunista (no livro é referido como o Partido, não esclarecendo qual deles, uma vez que na altura existiam muitos de índole marxista-leninista, mas tudo aponta para que seja o PCP). Casa-se uma primeira vez com Tucha, da mesma condição social da sua, de quem tem dois filhos, mas o matrimónio é desfeito pela mulher, que decide separar-se, o que lhe dá razões para se tornar obsessivo e magoado. Nas suas relações de professor e actividades políticas frouxas (nunca chega a ser aceite devido às suas origens), conhece Marília com quem, para colmatar a falta e o desgosto da separação de Tucha, casa, apesar da resistência daquela, militante convicta que punha os interesses do Partido à frente dos pessoais.
Abre o livro com Rui S. a visitar a mãe moribunda no hospital, velada por uma prima que tece crochets feios (segundo ele), e é a partir daí que as evocações do passado, sobretudo da família, surgem. Primeiro o pai, que a esta altura se encontra ausente no estrangeiro (talvez em relações amorosas duvidosas), depois a mãe e as irmãs – uma delas professora de música muito feia, solteira, o único familiar que ainda o apoia, embora condicionalmente, após a separação de Tucha –, e o cunhado, arrogante, moralista (embora cheio de podres), que acaba por ser a esperança do filho desejado para a continuação da actividade empresarial da família, embora seja ele médico obstetra. Todos renegam Rui S., cada um à sua maneira, pelas decisões ou indecisões que toma ao longo da sua vida, mas é principalmente o seu segundo casamento, com a comunista Marília, que é visto como a grande nódoa para a família.
Para Marília, o marido nunca será a prioridade, e o capricho do casamento confunde-se com a sua atitude conversora de tornar o burguês num proletário esclarecido. Ela própria propõe no seio da célula do Partido a que pertence o estatuto de observador para Rui S. que é severamente contestado. Este, assumindo a culpa pelas suas origens, distancia-se, da mesma forma que vai tomando consciência de que Marília é apenas a substituta de Tucha, porque não recuperou do desgosto do divórcio. Lamenta também o seu distanciamento para com os filhos, pequenos durante a separação, quem raramente vê depois de o casal se ter separado. Conhece, num bar de subúrbios, um artista de circo convencido que é um tenor sobejamente conhecido nacional e internacionalmente (embora refira que o mais longe que tenha actuado terá sido Badajoz), mas cuja performance nunca ousara passar de um espectáculo patético de palhaços num circo pobre. É nesta altura que Rui S. encara a sua vida como esse espectáculo pobre, onde ele é a atracção principal. Comprometido para uma palestra da Universidade, decide romper esse compromisso e convence Marília para uma viagem a Aveiro, onde, oportunamente, lhe daria conta da sua decisão de se separar dela. Após três dias de convívio com a mulher e de muita reflexão, sente que afinal essa decisão não estava tão madura, e a insegurança volta, atordoado com a ausência da explicação dos pássaros por parte do pai, dependendo disso para poder tomar as devidas decisões que convém à sua vida. Não adivinhava, porém, que Marília tivesse também aproveitado essa estadia de quatro dias para uma reflexão idêntica e, ao contrário dele, decide mesmo acabar com o casamento, para dar prioridade aos pais que viviam em condições precárias e ao Partido, de que se afastara após o episódio de renúncia de integração de Rui S. como observador. É nesse quarto dia, domingo (o livro está dividido por quatro longos capítulos – quinta, sexta, sábado e domingo), desesperado com a decisão de Marília, que Rui S. decide suicidar-se, acabando morto na ria de Aveiro, com as gaivotas despedaçando-lhe o cadáver. Apontamento: os pássaros, assim designadas as gaivotas num conceito geral, agem de modo estranho para surpresa dos locais, talvez uma referência a Hitchcock que ALA quis introduzir.
Aparentemente, é um jornalista que pretende contar esta história de suicídio (sabe-se desde as primeiras páginas que será esse o destino de Rui S.), embora o recurso à terceira pessoa do singular seja intercalada e, na maior parte das vezes a partir do primeiro terço do livro, substituída pela primeira pessoa. É Rui S. afinal quem conta o seu fim trágico e anedótico, aludindo a um número de circo que todos esperam ver e vão comentando à medida que se vai desenrolando o novelo até ao desfecho. É assim que as outras personagens, da família principalmente, intervêm. A par, existem alguns depoimentos (para a investigação policial ou jornalística? – decida quem ler), cujo discurso formal resvala para uma interpretação, digamos oral, do juízo dos depoentes perante os factos. As personagens que depõem são os empregados da estalagem em Aveiro, depois os artistas de circo, também a família, incluindo as duas mulheres e um dos filhos, e há um outro, fragmentado, de uma parteira a quem o casal Rui e Marília recorreram no passado para um abortamento). A carga emocional do casal que viaja a Aveiro é intensificada pelo estado do tempo, em que, se não chove, pairam nuvens pardas e uma neblina persistente que invade a cidade desde o rio Vouga. Também os cheiros, fétidos, da ria de Aveiro ajudam a construir o cenário trágico e decadente para o destino de Rui S., bem como as referências às aves, ou “os pássaros”, que vão surgindo ao longo da narrativa em forma de maus presságios. O humor, como que saído de um anedotário negro e crítico, é uma constante no livro, principalmente quando Rui S. imagina as suas acções apresentadas e comentadas por um anão durante o seu suposto número apoteótico de circo.
É, para mim, e após reler, um dos melhores livros de ALA, consistindo num cartão-de-visita para toda a sua obra posterior; terá sido, à época (1981), mas com o juízo actual, uma obra-prima de então, em que a literatura portuguesa era tão vaga de inovação e de génio, salvo as devidas e raras excepções. É leitura obrigatória, e direi mesmo prioritária, para quem quer iniciar-se no mundo literário de ALA, mas também uma grande referência para quem, por curiosidade ou necessidade curricular, investe no estudo da obra deste mestre da nossa literatura. Um espectáculo único, apenas podendo ser apresentado pelo melhor dos melhores: António Lobo Antunes.
(Perdoem-me o impulso algo fanático da minha última afirmação do artigo, mas se ALA é, há vinte anos, o meu escritor preferido; relê-lo tem vindo a reforçar essa convicção, uma vez que regressando aos seus livros desde o começo, as surpresas são sempre novas, e constantes.)
(E, a propósito: dos raros livros de ALA que podem ser encenados ou adaptados ao grande ecrã, porque não um peça ou um filme baseado neste livro?!)
José Alexandre Ramos
08.01.2011
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