Carlos Reis: sobre Quarto Livro de Crónicas
excerto do artigo A obstinação do ofício, publicado na edição 1069 do Jornal de Letras, em que nos pontos 4 e 5 se refere ao Quarto Livro de Crónicas
4.
Alguns dos textos que podemos ler no Quarto Livro de Crónicas são o testemunho quase dramático de uma atitude que coroa (ou, de outro ponto de vista, sustenta) a obra do escritor. Numa dessas crónicas, lemos palavras emblemáticas: «é a obstinação do ofício que pratico desde que me conheço» (p. 190). Antes e depois desta afirmação, os textos deste volume confirmam o que em colectâneas anteriores já havíamos surpreendido: a consciência da crónica como discurso "intervalar" em relação à escrita do romance; a capacidade que ela evidencia para fixar momentos do quotidiano (rostos, gestos, personagens, ilusões e desilusões, farrapos de vida, afectos surdos, etc.), em registo, por assim dizer, paraficcional ; a imersão no mundo pessoal do escritor, em particular o da infância e o da família, sob o signo de uma memória aguda e, às vezes, dolorosa; a ternura escondida e, nas crónicas, momentaneamente revelada; o impulso para observar o mundo em planos autónomos, como que hierarquizados em função de um olhar cruelmente selectivo (do género: este que me fala não o ouço; reparo, sim, nos pormenores que me rodeiam e que a ele escapam); o sentido da auto-observação, com nada de narcisista e tudo de amargo desencanto perante a passagem do tempo que os espelhos, várias vezes aqui presentes, silenciosamente revelam. É destas matérias ainda algo informes [...] que emanam também figuras e episódios ficcionais que nos romances encontramos, como é evidente, muito reelaborados, assim se confirmando, como noutros momentos já disse, o carácter laboratorial destas prosas. Por muito que o escritor as desvalorize, a sua escrita romanesca deve-lhes muito.
5.
No Quarto Livro de Crónicas, ALA aprece-nos obcecado por esta interrogação: como se faz um livro? Ou então: será o livro que arduamente estou a escrever o último? Ambas as perguntas são subsumidas por uma outra, mais lata: quando termina o Grande Livro que incessantemente tenho estado a escrever?
As respostas (porventura respostas impossíveis) a estas questões justificam a formulação de um pensamento ético sobre a literatura que a espaços aqui encontramos, mas que sobretudo se acham em duas crónicas: «Onde o pobre escritor começa» e «Miguel Torga». Esta última tem a tonalidade de uma homenagem que é mais do que isso. No autor de Poemas Ibéricos, ALA não louva apenas a personalidade literária que a espaços admirou e admira, mas também alguém que teve a coragem de dizer Portugal; em Torga (que ALA nem chegou a conhecer pessoalmente), é sobretudo realçado "um sentido ético da Literatura, da Medicina e da Vida que me faz lembrar, em exigência, o que o meu pai nos inculcou" (p. 315). Assim mesmo.
E assim mesmo Lobo Antunes explana, em «Onde o escritor começa», primeiro que tudo o modo de fazer (a técnica) a que obedece o começo de um novo livro: os gestos, os materiais incipientes, os lentos avanços. Depois disso, o radical empenhamento numa missão: "sentido de missão", afirma; e completa: "acto sagrado" (p. 226). Acima de tudo, a ética da escrita que aqui fica exarada, mas que podemos perceber em muitos outros testemunhos do escritor, culmina num movimento de plenitude em que ALA todo se compromete, sem nada poupar nem perdoar, aos outros e antes de todos a si mesmo. Deste modo, os romances que escreve "são tudo. Pelo menos quero que sejam tudo. Não: exijo que sejam tudo. E não devem nada a ninguém: não existe uma só voz alheia na minha voz, não devo seja o que for seja a quem for hoje em dia" (p. 227).
Soberba do escritor? Arrogância intelectual? Num tempo em que, no mundo da literatura como noutros mundos, muito se contrabandeia e pouco se constrói, com honradez e com sentido de exigência, é fácil e é cómodo colar etiquetas em quem fala com tal desassombro. Mas repare-se: o ofício do escritor assim entendido não se esgota em si mesmo; este "escaravelho empurrando a sua bola" visa quem está para além dele e em volta dele: "Na direcção dos leitores, se calhar, na direcção de onde estamos todos, espero eu" (p. 227).
Assim se faz uma obra. Nos tempos sombrios que vamos vivendo, quando a literatura se arrisca a perder o lugar de referência simbólica que de há muito vem ocupando, o mínimo que se nos pede é que sejamos leitores à altura de um grande escritor, como é António Lobo Antunes. A uma tão rigorosa ética da escrita como a que ele subscreve tem que corresponder uma correlata e não menos escrupulosa ética da leitura.
por Carlos Reis
edição 1069 do Jornal de Letras
21.09.2011
[grafia revista para as normas antes do AO90]
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