Ana Cristina Leonardo: crítica a Comissão das Lágrimas
Jogo de Espelhos
Disse em tempos Eduardo Lourenço, a propósito da escrita de António Lobo Antunes, que "a África foi o espelho no qual ele pôde ver melhor o delírio da experiência portuguesa", mostrando-nos "não apenas a morte em África mas a nossa própria miséria, os nossos terrores sepultos" ("António Lobo Antunes. A Crítica na Imprensa 1980-2010 Cada Um Voa Como Quer", Edição Ana Paula Arnaut, Almedina, 2011, pág. 257). O escritor, depois de recentemente ter andado por lá perto no belíssimo "O Meu Nome É Legião", volta a render-se ao tema, agora num mergulho em apneia que tem como ponto de partida um episódio histórico. "Comissão das Lágrimas", cujo título retoma, com exactidão, o nome pelo qual ficou conhecido o tribunal que, em Angola, julgou - e condenou sumariamente à morte - os presumíveis envolvidos no golpe fratricida de 27 de Maio de 1977, ter-lhe-á surgido a partir da história trágica de Elvira, conhecida por Virinha, uma militante do MPLA que, torturada e assassinada na sequência dos acontecimentos, se tornaria num símbolo de resistência: "A rapariga sem língua continua a cantar, erguíamo-la do chão e continuava a cantar, não se cala (...)." Se o livro se funda no real, este, porém, apenas lhe serve de pretexto e, como sempre em Lobo Antunes (uma das razões por que é grande), o particular depressa cavalga o universal. Aqui, África é, de facto, um "espelho" no qual ele pode ver melhor o "delírio da experiência portuguesa", mas também o sofrimento que nos calha a todos. O romance retoma o registo polifónico habitual ("o meu ofício é traduzir vozes", pág. 128), organizando-se em torno de três personagens principais. Cristina, internada numa clínica, assombrada por vozes que não lhe dão descanso; a sua mãe branca, Alice/Simone, ex-dançarina de pluma de lantejoulas que "coxeia a sua desgraça"; e António, o preto a quem os brancos não deixaram ser padre, o pai (?) torcionário que, em Lisboa, continuará "à espera que o matem". A polifonia é contrariada pelo cruzamento intricado dos registos e pela dúvida que se instala ao longo do texto. Quem fala? E quem fala diz a verdade ou delira? O tema da verdade - que é, afinal, o tema que importa a todos os inquisidores - confunde-se, assim, nas memórias (reais?, inventadas?) de Cristina na clínica e as confissões arrancadas pela Comissão das Lágrimas, mais a confissão a que António é obrigado no seminário: "(...) perguntavam-me - Desonraste a Divindade?, e não era que não quisesse contar, era que não achava o que devia ser contado, pensava - Ensinem-me o que deve ser contado, ou - Ensinem-me o que querem que eu conte". A capacidade de a ficção ir mais longe explicara o desejo do literário. Por isso, talvez, o realismo estará tão distante do registo de António Lobo Antunes, mesmo se, paradoxalmente, as palavras com que se exprime optem sempre por uma materialidade crua, na fronteira do prosaico: "uma traineira com problemas nos ossos, por vezes um rebocador aflito da hérnia" (pág. 313). Finalmente, se Angola é o cenário principal de "Comissão das Lágrimas", só se dá a ver em contraponto com a marquise de Lisboa, "o mundo dos naperons" que ficou para trás no tempo, os camponeses "de olhos cheios de vacas" e o passado que se mistura com o presente, ambos dolorosos. E mais uma vez em Lobo Antunes seria preciso regressar à inocência da infância, no pressuposto de que tal coisa possa existir.
Ana Cristina Leonardo
Expresso, suplemento Actual nº 2033
15.10.2011
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