«De repente, percebi que sou mortal»


Diário de Notícias
Entrevista de João Céu e Silva
28 de Outubro de 2010

foto por Orlando Almeida

«De repente, percebi que sou mortal»

António Lobo Antunes prometeu regressar às páginas do DN aquando do lançamento deste livro. A entrevista aconteceu na terça-feira e foi tudo menos clássica - até para os seus parâmetros de contestatário a este género jornalístico. O escritor iniciou a conversa preocupado com os falsos fenómenos editoriais do mercado português e o debate continuou por 45 minutos. Só então começou a dar a entrevista. Pediu para ligar o gravador e falou sem ter existido uma pergunta inicial. Disse tudo o que sentia e as três perguntas que lhe foram feitas posteriormente eram acessórias e, por isso, só estão nesta introdução.

Contrariamente ao que lhe é habitual, aceitou falar especificamente da gestação de Sôbolos Rios Que Vão e comentar o seu parto. Criticou a leveza com que se fazem as recensões literárias em Portugal e preferiu eleger as palavras do humorista Ricardo Araújo Pereira como das mais interessantes que foram escritas. Reforça: "Não estou preocupado com a crítica."
 
Também não está preocupado se este livro vai ser entendido: "Agora, que está cá fora, vai ter de se defender sozinho." Cita Shakespeare ao dizer que se escreve para os happy few e Lenine, quando referia que não era a arte que deveria descer ao povo mas este que tinha de subir.
 
Confessa que em Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? só tarde percebeu que "tinha usado o pedófilo e a drogada como muletas técnicas para levantar o livro" e que ficou "muito zangado com isso". Em relação a Arquipélago da Insónia, não tem "cedências." Quanto a Sôbolos, houve uma dor pessoal muito violenta durante o processo de escrita: "Estar a escrever o livro fez-me reviver aquilo que passei [quando foi operado a um cancro em 2007]. É claro que é muito diferente porque eu não fui operado pelo dono do hotel como acontece no livro."
 
Este livro é inclassificável e dar-lhe cinco estrelas não o torna decifrável ou mais sedutor para os admiradores do 22.º volume de uma carreira literária com 30 anos.
 
Ligo o gravador...
Eu disse várias vezes que ia deixar de escrever e tenho a maior vontade de o fazer. Simplesmente não sou capaz, porque a minha vida fica completamente sem sentido...
 
Neste livro [o próximo] já vislumbro, dentro do magma, a primeira versão. Mas está a dar-me tanto trabalho que acabo o dia estafado fisicamente. Este que saiu agora [Sôbolos Rios Que Vão], enquanto manuscrito, tinha cinco vezes o tamanho do que foi publicado. Parece que estou a descascar uma cebola e que a cada revisão sai uma película até ficar como quero. Fico completamente escravo do livro. e, quando digo que vou deixar de escrever, é do coração, mas não sou capaz... Parece que há diante de mim um abismo nos intervalos dos livros, mas não concebo a vida sem eles porque não sei fazer mais nada...
 
Cada vez mais me é claro que o que escrevo não são romances no sentido da palavra. Não me interessa a intriga, a história ou as personagens! Há um tempo atacaram-me dizendo que não tinha personagens. Esse é o maior elogio que me fazem... Queria que fosse uma viagem ao coração. É como dizerem que o livro é autobiográfico - seja lá o que isso queira dizer. O que interessava era fazer o melhor que podia e desembaraçar-me dele, porque é um objecto independente de mim e que não me pertence. Na vida, é muito difícil separar o que é invenção do que é memória. A vila que aparece no livro não existe, embora tenha partido de uma real, que é Nelas, mas que nunca existiu tal como está no livro. Tal como a Lisboa que aparece nos meus livros não existe. O Hotel dos Ingleses não era aquele. O curioso é como tudo é e não é ao mesmo tempo. A partir da experiência, o que acaba por sair das minhas mãos é outra coisa...
 
Com este livro havia todos os problemas técnicos da escrita. Preencher o livro de silêncios... Consegui exactamente aquilo que queria e as pessoas têm o direito de gostar ou não, de aderir ou não e de achar difícil ou fácil. É-me indiferente, o livro é aquilo que queria escrever. Nos últimos livros está lá tudo, aquilo que tem sido publicado era aquilo que eu queria dizer mesmo que tenha evoluído a minha ideia acerca dos livros...
 
Recebi um telefonema da Dominique Bourgois [a sua editora francesa] a propósito da tradução de O Meu Nome É Legião e ela disse-me uma coisa que me surpreendeu: "Fartei-me de chorar com este livro." Nunca me passou pela cabeça que o livro fizesse uma pessoa chorar. As reacções são muito surpreendentes, e isso faz-me perguntar o que é a literatura? Há um livro do Jean-Paul Sartre com este título, em que discute durante 400 páginas o que é de facto a literatura. Eu não sei o que responder, ou então faço como o Santo Agostinho a propósito do tempo: "Se não me perguntas, sei o que é que é. Se me perguntas, já não sei dizer." Uma coisa é certa, cada vez trabalho mais para obter um resultado satisfatório. Este próximo livro ainda está muito longe do que eu queria. Sei lá se vai ser um livro? É muito ambicioso do ponto de vista técnico formal. É a voz de uma rapariga que se desdobra em três. Como lidar com isto? Misturando a técnica e a emoção, porque um livro só com técnica e sem emoção é frio e sem charme; um só com emoção é um delírio desestruturado...
 
Uma coisa que me começou a interessar foi a sobrevivência do meu trabalho. Todos sabemos que raras obras sobrevivem aos autores, mas eu queria que [a minha] ficasse, como permaneceram as dos escritores de que gosto...
 
E a série de equívocos que há à volta de um homem. Quem é que lê o Guerra e Paz? Todos dizem que é o maior livro, mas não é verdade, porque é profundamente desequilibrado; começa com a história de uma família e acaba como uma epopeia; sobre certos aspectos é profundamente maniqueísta porque Tolstoi projecta em Napoleão todos os defeitos que não gosta no homem enquanto no Kutuzov põe todas as qualidades. No entanto, é um grande livro, um mamute sem a perfeição formal de Anna Karenina...
 
Mas será que a perfeição formal é muito importante? Ou será mais importante a emoção que o livro nos transmite; o ser a fonte de conhecimento; ensinar-nos a olhar para dentro e permitir conhecer melhor o nosso mecanismo interior...
 
Depois, há outra coisa que começa a contar: a idade e a noção do fim. Com o cancro foi a primeira vez que estive diante da minha finitude enquanto homem. O que é que me vai acontecer? Precisava de 200 anos para escrever e, pela primeira vez, de repente, percebi que era mortal. Que o tempo que tenho, tal como quando tinha 20 anos, é medido. Mesmo que a esperança média de vida aumente cada vez mais, sei lá quanto tempo é que eu vou ter?
 
Tudo isso relativiza o sucesso, e o que me interessa e cada vez mais é produzir uma obra digna. Que me deixe fechar os olhos em paz comigo. Sem ter feito cedências. Custou-me imenso eliminar no manuscrito frases que eram bonitas e agradáveis para o leitor, mas que prejudicavam a eficácia. É melhor que não exista...
 
Houve isso [o cancro] que passou a ser importante para mim. Cada vez mais os exames vão sendo espaçados e a possibilidade de cura já começa a ser muito grande. Mas outra coisa qualquer virá. Ainda sinto forças dentro de mim para continuar a escrever. Por isso é que quero uma obra digna, sem cedências...
 
Vi uma crítica que falava em fragilidades do meu livro, mas são essas fragilidades que dão a força ao livro. E o livro só é confuso para quem não estiver dentro dele. Como diz o Georges Steiner, é preciso capacidade de empatia e de compreensão profunda dos mecanismos mentais do autor. Um bom leitor, quando entende o livro, torna-o bastante claro. Quando li o Moby Dick achava aquilo uma confusão porque não tinha a experiência de vida e a perspicácia para entender aquele extraordinário monumento de livro...
 
Cada vez menos há espaço para a grande literatura. As pessoas passam o tempo no Facebook, na Internet, comunicam-se por e-mail e eliminaram a correspondência. É impossível pensarmos que as pessoas não deixarão milhares de cartas como os vitorianos fizeram. Talvez o melhor livro de Flaubert seja a sua correspondência, e isso vai desaparecer. Há uma falta de pudor por parte das pessoas que escrevem nos blogues sobre os seus estados de alma. É extraordinário que haja pessoas que pensem que os estados íntimos têm importância universal. Os meus, só têm para mim. Importante, serão os livros e se for capaz de fazer deles a voz da tribo...
 
Enquanto leitor, se um livro é bom, ele começa a fazer percurso dentro de mim quando acabo de o ler. Essas vozes tornam-se cúmplices, amigos e companheiros de viagem porque continuam vivas connosco. O Sandokan continua vivo em mim...
 
No meio de toda esta floresta de enganos, como diria D. Francisco Manuel de Melo, e desta confusão de emoções que vivemos num presente que se encurta cada vez, a própria Internet autodevora-se. Isso é bom, porque o livro em papel tem perenidade e assegura permanência. Julgo que, sob a forma tradicional, os livros vão sobreviver - certamente vendendo menos - e a literatura vai prevalecer...
 
Até há muito pouco tempo, o que me interessava era descobrir, novas formas de dizer. Neste momento, é como se já tivesse um território conquistado, e só o quero é consolidar. Já delimitei as fronteiras e não vou sair delas. Construí o meu país, interessa-me aprofundá-lo e dar notícia dele. Fazer uma cartografia das emoções. Essencialmente é isto.


28.10.2010

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