Vozes nas noites de Lobo Antunes


O Estado de S. Paulo
Entrevista em Estadão.com
24 de Abril de 2010


Referência da literatura portuguesa atual, o ficcionista de O Arquipélago da Insónia, que sai agora no País, fala deste e de seu novo livro. E admite: tem cada vez mais medo de escrever.

O doloroso canto de uma mulher torturada povoa o pensamento do escritor português António Lobo Antunes desde a semana passada, quando começou os rascunhos que podem resultar em seu novo livro, que tem o título provisório de Comissão das Lágrimas. "É a voz de Elvira, conhecida como Virinha, que foi presa em Angola em 1977, quando o país, recém-independente de Portugal, enfrentava problemas internos", comenta ele.

Comandante do batalhão feminino do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola, grupo guerrilheiro que assumiu o poder), Elvira foi uma das 80 mil pessoas mortas sob suspeita de confrontar o governo de Agostinho Neto, "cifra superior à dos assassinados durante todo o período ditatorial de Augusto Pinochet no Chile", acrescenta Lobo Antunes falando ao Estado, por telefone, de seu escritório em Lisboa.

O canto de Elvira se fez ouvir nas palavras do ficcionista quando o tema da conversa sinalizava outra voz - a de um autista, personagem central de O Arquipélago da Insónia, romance de 2008 de Lobo Antunes que está sendo publicado agora no Brasil (Alfaguara; 560 págs.). E tomou conta dos primeiros minutos da entrevista. Acompanhe.

Como Elvira, a Virinha, que comandou o batalhão feminino do MPLA, foi torturada e morta?
Seus pulsos foram amarrados com arame e os tornozelos atados nas costas. Levantada a uma altura de dois metros, ela era repentinamente solta, seu corpo tombando no chão. Mas, mesmo torturada, Elvira não parou de cantar, só quando morreu.

E foi essa Comissão das Lágrimas, uma espécie de tribunal que não julgava, apenas determinava a forma da pena, que decidiu o futuro de Elvira?
Sim. É um nome espantoso, carregado de poesia para determinar algo tão cruel. Isso me faz lembrar o povo da Romênia que, antes da queda do comunismo em 1989, perguntava se haveria vida antes da morte.

Como médico psiquiatra, você conheceu Angola durante a guerra colonial, entre 1971 e 1973. Foi durante o período anterior à independência, portanto, você precisou fazer muitas pesquisas?
Não fiz quase nenhuma, caso contrário seria esmagado pela documentação. Nesse caso, o melhor seria fazer um livro-reportagem. Prefiro confiar em minha sensibilidade. Mas nem sei ainda se terei um livro, pois vivo agora o momento mais terrível, aquele das falsas partidas: um caminho aponta, mas não é esse. Surge outro, também não é. Portanto, é um trabalho para, no mínimo, dois anos, que pode resultar em nada.

São tais inspirações que dão a largada em suas obras. Sobre O Arquipélago da Insónia, por exemplo, lançado agora pela Alfaguara, você conta que primeiro ouviu a voz do autista, um dos personagens principais.
Eu devo ter dito isso mesmo... É curioso mas me recordo mais dos problemas que enfrentei que propriamente da narrativa. Naquela época, em 2008, descobri que estava com câncer no intestino. Foi terrível, não sabia se ia viver ou morrer. Foi difícil retomar dois meses depois sem escrever, pois não tinha forças. Voltei lentamente, escrevendo uma hora e ficando cansado. Ao mesmo tempo, ganhei o Prêmio Camões, o Juan Rulfo; minha vida se tornou um inferno. Finalmente, quando estava terminando o livro, descobri que havia me curado.

O discurso do autista permite que você exercite a linguagem fragmentada para narrar a história de três gerações de uma família rural portuguesa, desde sua ascensão até a sua queda total. Como funciona o trabalho de burilar a palavra?
Eu sei que ninguém escreve como eu. Mas isso não me traz alegria alguma. Escrevo com dificuldade, mas me sinto à vontade com o assunto. Fico espantado quando algum leitor confessa ter certa dificuldade no entendimento - a escrita sempre foi muito clara para mim.

Em sua opinião, o que explicaria essa dificuldade do leitor?
Não sei, talvez a maioria espere por uma intriga bem definida, o que não acontece em meus livros. Não se pode piscar ao leitor, tentar seduzi-lo, pois aí se compreende que existe essa intenção. O livro deveria ser publicado sem o nome do autor, aí acabariam os problemas de inveja. Deveria, sim, levar o nome do leitor, porque o livro também é a nossa circunstância. Veja, a única obra que me fez chorar foi Love Story, que é uma porcaria. Mas eu estava isolado na África, minha mulher grávida em Lisboa. Assim, quando lemos, estamos a projetar nossos fantasmas, sofrimentos, medos. O que vai ficar é a obra e não seu autor.

Depois de O Arquipélago da Insónia, você publicou Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? e há cinco meses finalizou Sôbolos Rios Que Vão, que deve ser lançado em Portugal em outubro. Escrever não parece ser tão sacrificante para você.
Tenho cada vez mais medo de escrever, de decepcionar as pessoas que confiam em mim. Não tenho direito de desiludi-las. É um recomeçar em cada livro. O leitor não pode perceber isso, tem de acreditar que é muito fácil escrever. Mas espontaneidade dá muito trabalho. Outro dia, observei fotocópias de manuscritos de Chekhov, Tolstoi e não havia uma linha que não estivesse rasurada. Mas, ao leitor, parece que foi como água surgindo de uma fonte.

A novidade, portanto, tem de surgir a cada novo abrir de página?
Para mim, sim. Não gosto de repetir fórmulas. Só começo um novo livro quando estou seguro de que não conseguirei escrevê-lo. É um desafio, não posso me deixar vencer pelas palavras.

E, nesse caminho, a trama é secundária?
A intriga não me interessa, só serve para apanhar o leitor. O livro é simbólico, quero expressar os sentimentos mais profundos, aqueles, por definição, intraduzíveis em palavras. Para mim, essa é a única forma de se escrever um livro. A história não tem importância nenhuma, serve apenas como um anzol para fisgar o leitor. Veja O Velho e o Mar, de Hemingway: um homem vai pescar e volta à praia sem nada. Ou Madame Bovary: mulher que se aborrece com o marido arruma um amante e termina se matando. O problema é como vestir isso para dar algo novo ao leitor.


citado de Estadão.com
versão on-line de O Estado de S. Paulo
24.04.2010

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