Vinicius Jatobá: a propósito do lançamento em simultâneo no Brasil (Junho 2009) dos livros Explicação dos Pássaros e O Meu Nome É Legião.
Certa vez, em uma entrevista, Nabokov achou curiosa a consideração negativa de uma crítica francesa de que todos seus livros eram semelhantes. O que poderia ser taxativo de falta de versatilidade de sua paleta cromática se revelou óbvio para Nabokov. Com humor, respondeu: "A originalidade só tem a si própria para copiar".
Essa provocação, divertidíssima, é falsa em princípio, uma vez que a originalidade é uma impressão superestimada - livros nascem de livros. No entanto, trocando originalidade por obsessão, chega-se mais próximo do motor matricial do grande escritor e da sua evidente "pobreza" - ele se debruça sempre sobre o mesmo sentimento, e sua paleta não possui mais que três ou quatro cores. Verticaliza um mesmo estado de espírito, e dele retira, ainda que sua bibliografia seja vasta, o "mesmo" livro até que a morte o separe do papel.
Esse é o caso de António Lobo Antunes. O lançamento simultâneo de Explicação dos Pássaros e O Meu Nome é Legião, separados em suas datas originais de publicação por mais de duas décadas, são o termômetro ideal para diagnosticar esse sintoma: o tema de Antunes é sempre o de uma personagem doente tentando articular narrativamente um mundo desfeito pela violência. A doença pode ser concreta ou espiritual, tanto quanto o agente demolidor.
O que interessa a Lobo Antunes é esse fosso aberto entre a personagem deslocada de sua normalidade por algum acontecimento drástico e o mundo que se transforma radicalmente quando visto desse outro lugar traumatizado. Percorrer distâncias; limar a inadequação; encontrar o rosto perdido no espelho; tornar em momentos, espaços cerrados. A massa verbal de Lobo Antunes se erige sobre gestos simples expandidos em seus sentidos pela doença e violência.
Publicado em 1981, Explicação dos Pássaros é um rompimento com a trilogia sobre a guerra colonial em Angola com que se sagrou no mapa literário português. Não há mais as lembranças fantasmais dos cadáveres, a geografia sensual de Luanda crivada de violência, a incapacidade do ex-combatente em retornar ao mundo cotidiano anterior. Explicação avança sobre as agruras da vida conjugal. Rui, o narrador, amarga uma recente separação dolorosa e tenta reconstruir sua vida ao lado de uma nova mulher com quem se casou por um desejo de preencher sua solidão.
Ao contrário da imensa maioria dos romances de Antunes, essa é uma narrativa de personagens em movimento: Rui monologa enquanto avança com seu carro por cidades costeiras de Portugal. Está sensibilizado com a doença da mãe e evoca sua infância e sua vida enquanto reúne forças para pedir divórcio da esposa que não ama. O livro é um grande ritual de adeuses, e o desconforto crescente de Rui aponta apenas para um final possível. E trágico.
Como em outros livros de Antunes, a trama é pífia. As coisas não acontecem; o que acontece é o pensamento das personagens. Possuem uma fluência delirante, e há uma inegável vocação poética em Antunes. Em certos momentos, no entanto, as imagens aberrantes não ajudam muito a visualizar a narrativa. É como se a profusão de metáforas nublasse o enredo.
Ainda seriam necessários alguns romances para Antunes encontrar uma forma narrativa que adéqüe sua sensibilidade poética a uma plasticidade necessária para sua íntegra legibilidade. Antes de A Ordem Natural das Coisas (1992), muitos de seus romances flertavam com o hermetismo. É de se perguntar: de quê adianta um universo ficcional denso se o leitor não encontra nele um espaço mínimo para contemplá-lo?
O Meu Nome é Legião, nesse sentido, é um animal diferente. Destilado e preciso, proporciona uma intensa experiência de leitura. É o Capitães de Areia do século XXI. Como o grande romance de Jorge Amado, mergulha no mundo da marginalidade de um grupo de delinqüentes juvenis. As dessemelhanças surgem no enfoque. Amado faz quadros gerais, e suas personagens são maiores que o mundo: redondas, inteiras. Lobo Antunes é todo fragmento: retalhos de vozes, lapsos de imagens, frases interrompidas. E seus miúdos não são heróis. Como uma praga, eles espraiam terror e violência enquanto deambulam pelas ruas de Lisboa.
Organizando a narrativa está a voz de Gusmão, policial marcado por um terrível sentimento de solidão, doente de tédio, e que é designado para investigar os delitos. O romance abre com o relatório de Gusmão, e ao longo de sua massa verbal o retoma, como se ele fosse o motivo sobre o qual a litania de vozes, cada uma marcadamente distinta, irá se amalgamar uma e outra vez.
Legião é um romance invulgar: Antunes demonstra as deformações que os fossos sociais infligem no pensamento desses seres excluídos. Longe está a utopia de Amado, sua fé nos homens. Se Capitães é a elegia aos jovens que não tiveram condições sociais de se tornarem adultos nobres, Legião é uma ópera punk e violenta. Delírio de vozes; violência gratuita; masoquismo e humilhação; racismo e xenofobia; lei e punição. O problema não tem solução visível e a legião apenas cresce a cada dia. E tanto o leitor como Rui, cúmplices nesse mergulho, experimentam um mundo sem controle do qual não arrancam soluções.
Vinicius Jatobá
artigo citado de Terra Magazine
02.07.2009
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