Ana Cristina Leonardo: sobre Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?


Disse António Lobo Antunes, em entrevista ao “Diário de Notícias” (14/02/2009), que este livro iria “dar um trabalhão à crítica”. E depois precisou que “queria fazer um romance à maneira clássica, que destruísse todos os romances feitos desse modo”.

Se era esse o objectivo de Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? o escritor falhou o alvo. Embora também possamos tomar as declarações acima por conta de uma boutade. Sem mais. Eu, pelo menos, prefiro entendê-las assim. E guardar apenas a parte do “romance à maneira clássica”: porque esta é a narrativa mais formalmente conservadora das últimas que António Lobo Antunes vem produzindo.

Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? – título que retoma um verso de uma cantiga popular de Natal, conforme crónica publicada na “Visão” de 25/01/2008 –, narra a história de uma família ribatejana em processo de decadência acelerado: a mãe “vai morrer às seis horas”. O pai, viciado no jogo, já faleceu, há uma criada velha, Mercília, misto de Cassandra e Gata Borralheira carcomida pelo reumático e pela vida madrasta, e há os filhos. Beatriz, abandonada pelos homens e amada pelo pai; Rita, levada prematuramente por um cancro; Ana, consumida pelo pó que injecta nas veias; João, que gosta de rapazes e é o preferido da mãe; Francisco, possuído pelo ódio e aguardando a vingança inscrita nos livros das contas; e o bastardo, aquele cujo nome nunca se pronuncia e que não se mostra às visitas.

Cada uma das personagens (incluindo os mortos e os quase mortos...) fala em momentos distintos e sequenciais, cosidos entre si de acordo com a estrutura de uma corrida de touros: “Antes da Corrida”, “Tércio de Capote”, “Tércio de Varas”, “Tércio de Bandarilhas”, “A Faena”, “A Sorte Suprema”, “Depois da Corrida”. Por vezes atropelam-se e o autor atropela-os a todos.

A morte, e o prenúncio de morte, atravessa o romance do princípio ao fim, mas é sobretudo a memória que importa. Uma memória quase sempre terrível que funda a identidade de cada uma das vozes, todas, afinal, apenas uma, unidas pela impossibilidade de regressar à “paz da infância” (se paz houve).

Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? chega, porém, como qualquer texto que se preze de possuir aquele “je ne sais quoi” que o eleva ao literário, em camadas. Podemos lê-lo, por exemplo, como um retrato realista de um Portugal marialva e decadente. Nesse sentido, é bem o espelho de um Ribatejo amoral, prenhe de matriarcas dominadoras, homens ausentes, pobres hereditários e corridas anacrónicas, que se acrescenta à visão do Alentejo ensaiada em O Arquipélago da Insónia. Podemos também, pondo de lado a geografia (quanto mais particular, mais universal...), lê-lo como uma viagem por paisagens interiores, espelho de infâncias de abandono, vidas falhadas e crueldades em cadeia. Finalmente (entendendo-se aqui o advérbio de modo retórico), como um exercício limite onde, apesar da estrutura “clássica”, o autor se exibe, omnipresente, borrando assumidamente a pintura de um romance à superfície polifónico e perspectivista (forma que Durrell levaria ao paroxismo n’ O Quarteto de Alexandria), mas no qual, de facto, se visa mais a “unidade essencial do mundo” do que a sua “pluralidade” (e arrisco que António Lobo Antunes estará mais perto do "uno" do que do "plural").

E é aqui, no território desta terceira possibilidade de leitura, que me parece que o escritor do extraordinário O Meu Nome É Legião mais surge enfraquecido, acontecendo-lhe precisamente aquilo que critica a Nabokov: estamos sempre a vê-lo a ele atrás do livro e não havia necessidade.


Ana Cristina Leonardo
11.10.2009

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