Raquel Cristina dos Santos Pereira disserta sobre Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo
O signo linguístico e a literatura pós-moderna em Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo
Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja
Procura um claro instante para a aparição.[...]
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem[...]
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias turbulentas,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro. (Eduardo White)
Rever as leituras acerca do mundo é uma das possibilidades que a obra de António Lobo Antunes permite. Um escritor de autenticidade literária, embora não inovadora, mas que proporciona ao leitor sentir prazer em cada “verso absorvido”. Deparando-se uma vez apenas com as narrativas antunianas não se consegue fugir mais delas, assim como “não se foge de Angola” (Antunes, 2003: 27). Pois não se consegue ignorar Lobo Antunes no cenário literário da atual História mundial.
Suas narrativas demonstram, por vezes, um caráter autobiográfico, devido à recorrência de temas que marcaram suas ética e estética literárias, como, a guerra de Angola.
As sensações, os estados de ânimo revelados pela densidade da sua prosa “vagueiam” em alguns momentos pelos resquícios da sua memória biográfica. Como, por exemplo, a dramática experiência na guerra de Angola, vivenciada por Lobo Antunes durante três anos e que, segundo ele, foram suficientes para se tornar “o acontecimento capital da sua vida”. Mais uma vez, a temática da África estará entremeada nas vozes narrativas do seu recente romance Boa tarde às coisas aqui em baixo.
Um romance em que Lobo Antunes criva novamente a possibilidade de se articular o texto (sua escrita) com o intertexto da vida, isto é, interrelacionar os “textos da sociedade e da História”. Apesar do texto deste escritor não necessitar, para ser estudado, de qualquer referência ao conteúdo e / ou “às determinações externas como, as sociológicas, históricas e psicológicas” (Barthes, 2004: 267).
Sem a intenção de enquadrar a narrativa de Lobo Antunes em alguma “linha” ou ciência literária, mesmo porque qualquer teorização de um texto deve partir dele mesmo, pode-se afirmar que o seu recurso estilístico assemelha-se a um estilo estético surgido nos anos 70, do século XX, que teve Jacques Derrida um dos seus mais importantes expoentes: a “teoria do texto”, ou “teoria da escritura”, que preza pelo desequilíbrio da estrutura formal da escrita; e, pela “abertura”, portanto, do signo, conforme define Roland Barthes.
Abrir o signo implica conceber o livro como um “organismo vivo”, do qual o autor é um sujeito fragmentado entre suas linhas escritas, permitindo, assim que o texto se mova, se multiplique, se mexa, fora de seu controle de escritor. Logo, nada de ponto final no texto, nada de última palavra”, rejeita-se a idéia de um significado último. Pois, em cada ponto se é possível suplementar algo mais. Algo de novo sempre pode brotar mais tarde nos interstícios do tecido, do texto “esburacado” (Barthes, 2004: 257), da “estrutura destroçada” (Derrida, 2002: 16).
É um texto “esburacado”, “sem-projeto”, “sem argumento”, que o mundo antuniano nos apresenta, no qual não há o lugar de quem fala, suspira ou questiona.
A narrativa se coloca plural, ambivalente ao dar voz às diferenciadas realidades humanas. O texto, a partir daí, adquire a forma de um objeto social (Barthes, 2004: 267-268) do qual o intelectual dispõe para problematizar questões inerentes à humanidade. Formular as respostas, as soluções para tais questões não se é permitido, pelo simples motivo do intelectual pós-moderno, neste caso, em particular Lobo Antunes, não acreditar que exista uma única e absoluta realidade ou verdade para a nossa existência.
Desse modo a consciência do intelectual da pós-modernidade, hoje, enxerga seu texto como um objeto que não mais lhe pertence, a partir do momento que se materializa. Daí, a narrativa não ser do singular, não haver apropriação do texto, porque ele se situa no “intercurso infinitivo” dos códigos, e não no termo de uma atividade “pessoal” do autor.
E, é exatamente neste enquadramento de texto que se situa Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo ao apresentar fragmentadamente o indivíduo deslocado no universo pós-colonial português e no seu próprio universo interior.
O escassamento das referências, a relativização da verdade, a oscilação entre mundos teoricamente possíveis dos relatos estão envoltos numa atmosfera “tensa”, e, por vezes, silenciosa de Boa tarde às coisas aqui em baixo.
Uma narrativa de “vozes” que gritam a flagelação humana e as suas íntimas peculiaridades; “Vozes” que revelam um universo de degradação e ruínas “morais” dos falidos: império colonial português e do sistema angolano pós-colonialismo. Esta narrativa nos conduz aos labirintos das consequências da guerra no interior humano. E, cabe ressaltar que não há necessidade de se ter vivenciado a guerra de Angola para compreender ou sentir o que uma guerra pode nos ofertar. Pois, “não somos nós, hoje, neste início de milênio, o resultado de tantas guerras?” (Antunes, 2001: 27).
Em Boa tarde às coisas aqui em baixo, a exposição da conturbação interior do homem se visualiza a partir da fragmentação não apenas da estrutura estilística, mas também, por meio da fragmentada estrutura do pensamento, do raciocínio das “vozes” que ora se manifestam, ora se calam no romance.
Além da abordagem relativizada das calamidades humanas (retratadas nas frustrações portuguesas), o romance põe em voga uma das maiores problematizações portuguesas: o continente africano. Palco de antigos conflitos entre os portugueses e os seus habitantes, como o desentendimento ocorrido no século XVIII em Angola, época do domínio da Rainha Nzinga, que chegou a realizar alianças com os holandeses para tentar expulsar os portugueses do seu território. Boa tarde as coisas aqui em baixo não se classifica como uma obra sociológica, pois Lobo Antunes não realiza um retrato da guerra colonial e dos conflitos pós-coloniais, mas se utiliza dos fatos da História para explorar a conturbação do interior humano, atitude também demonstrada nos romances: Os cus de judas e O esplendor de Portugal, dois de seus livros, os quais a estória é ambientada na África.
Através de um “verdadeiro mosaico narrativo” (Castello, 2004: 1) a estória do romance situa-se no período pós-(guerra) colonial em Angola:
Um resto de portugueses no seu sangue, não jipes na fazenda que não havia fazendas, acabaram-se as fazendas, havia miséria e fome e guerra e os portugueses substituídos por pretos agora, pretos das furnas dos musseques, ratos assustados, furtivos, subitamente imóveis diante dos faróis dos jipes [...] quando depois do que chamavam independência, isto é dos pretos a entrarem-lhes a porta e a roubarem-nos, isto é dos pretos a matarem-se uns aos outros, isto é dos pretos a transportarem sem desculpas, insultando-se, batendo-se, as mobílias, os fogões, as roupas, quando depois da independência, isto é de cantorias e batuques [...] (Antunes, 2003: 138)
Esta época retrata os conflitos internos em Luanda provocados pelos dois principais pólos políticos do país: MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional pela Independência total de Angola). Intensificando, desse modo, o vazio e a depressão da sociedade africana já tão agravada pelas consequências da guerra anti-colonial:
comboios trazendo a morte sob a forma de pretos em Luanda
ratos de esgoto, ratos
a conspirarem nos musseques, chegavam nos vagões de gado
disfarçados de carregadores, agulheiros, serventes, víamo-los
sumirem-se das sanzalas à tarde
ratos
surgiram de manhã nas bancas do mercado
ratos
juntarem-se, separarem-se, conversarem entre si em Kimbundo
ratos
espiarem à noite, pegados aos arbustos, só focinhos, só olhos
focinhos e olhos de ratos, ratos (Antunes, 2003: 65)
As titubeações narrativas são ações constantes em Boa tarde às coisas aqui em baixo: “Não sei se ela disse” (Antunes, 2003: 15). Inexatidões que se revelam em deslocamentos temporal e espacial representados, por vezes, por alguns emblemas psicanalíticos, como a casa, por exemplo:
Não sei se ela disse
– Esta era a casa (Antunes, 2003: 15)
A casa que segundo Bachelard reflete o “drama das moradas humanas”, também é um dos diagramas da psicologia que guiam os escritores e os poetas na análise da intimidade. A casa mais ainda que uma paisagem é “um estado de alma”, mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, fala de uma intimidade. De uma intimidade revelada que parece não reconhecer o seu lugar no mundo, como acontece em Boa tarde às coisas aqui em baixo. Esta inexatidão espacial do romance também pode revelar criticamente o sentimento de descaso demonstrado pelo sistema português em relação ao continente africano. Indiferença portuguesa inclusive para com os seus cidadãos que estavam a serviço da pátria em Angola.
Apesar de o continente africano ter contribuído por séculos com a manutenção do poder e da glória do império português em relação a Europa, Portugal sempre olhou com descaso e superficialidade as questões africanas. O importante para o governo português era o que se extraía de recursos valiosos das colônias, ou melhor, das ex-colônias. Comportamento predominante até os dias atuais, nos quais os portugueses com o aval dos angolanos, exploram “livremente” a “terra vermelha” (Antunes, 2003: 138) – Angola:
Porque os barcos sobem e descem via pássaros e outros barcos e árvores e gente em fato de banho quase todos brancos e alguns pretos também embora não muitos visto que ainda são pobres e a mulher do senhor estrangeiro diz que é uma questão de tempo e a minha mãe acha os pretos bebés amorosos de se comerem e queixa-se que é uma pena que cresçam a minha mãe diz que crescendo ficam feios e com um cheiro esquisito e disse ao meu pai que podíamos levar um destes miúdos giríssimos para Lisboa e aproveitá-lo depois para servir à mesa lá em casa [...] e a mulher do senhor estrangeiro disse que tem um cozinheiro preto óptimo que até comida francesa faz e com um desodorizante forte não se nota o tal cheiro (Antunes, 2003: 563)
Tal postura portuguesa apenas comprova que as histórias de Portugal e de Angola estão interligadas na narrativa de Lobo Antunes e na memória de cada português e de cada angolano. A escrita e a memória fragmentadas do romance atingem o cerne dos problemas - não somente dos portugueses e dos africanos, mas de qualquer agente da realidade. Pois, a escrita de Lobo Antunes “relampeja, faz faiscar” o conturbado interior humano nas “vozes” portuguesas e angolanas que se entrelaçam no discurso fictício da vida.
Boa tarde às coisas aqui em baixo nos remete a um encontro do africano com o angolano; do português com o colonizador; do humano com a sua conturbação interior. O que se encontra ou reencontra nesta narrativa é a fragmentada gênese humana retratada pela imagem da escrita impetuosa e sedutora de António Lobo Antunes.
Este romance rememora em cada memória, em cada voz que o lê, as marcas peculiares, singulares do homem lançado num sistema pós-moderno, como os touros que são lançados à revelia, e, sem piedade na arena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, António Lobo. Boa tarde às coisas aqui em baixo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
BARTHES, Roland. Inéditos, I: teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BLANCO, María Luisa. Conversas com António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
CASTELLO, José. África, à beira da asfixia. Prosa & Verso. Rio de Janeiro: Jornal. O globo, 17 de janeiro de 2004, p.1.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MATOS, Olgário. Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Cia. das Letras; Rio de Janeiro: Funarte, 1990.
WHITE, Eduardo. Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992.
Faísca Troveja
Procura um claro instante para a aparição.[...]
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem[...]
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias turbulentas,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro. (Eduardo White)
Rever as leituras acerca do mundo é uma das possibilidades que a obra de António Lobo Antunes permite. Um escritor de autenticidade literária, embora não inovadora, mas que proporciona ao leitor sentir prazer em cada “verso absorvido”. Deparando-se uma vez apenas com as narrativas antunianas não se consegue fugir mais delas, assim como “não se foge de Angola” (Antunes, 2003: 27). Pois não se consegue ignorar Lobo Antunes no cenário literário da atual História mundial.
Suas narrativas demonstram, por vezes, um caráter autobiográfico, devido à recorrência de temas que marcaram suas ética e estética literárias, como, a guerra de Angola.
As sensações, os estados de ânimo revelados pela densidade da sua prosa “vagueiam” em alguns momentos pelos resquícios da sua memória biográfica. Como, por exemplo, a dramática experiência na guerra de Angola, vivenciada por Lobo Antunes durante três anos e que, segundo ele, foram suficientes para se tornar “o acontecimento capital da sua vida”. Mais uma vez, a temática da África estará entremeada nas vozes narrativas do seu recente romance Boa tarde às coisas aqui em baixo.
Um romance em que Lobo Antunes criva novamente a possibilidade de se articular o texto (sua escrita) com o intertexto da vida, isto é, interrelacionar os “textos da sociedade e da História”. Apesar do texto deste escritor não necessitar, para ser estudado, de qualquer referência ao conteúdo e / ou “às determinações externas como, as sociológicas, históricas e psicológicas” (Barthes, 2004: 267).
Sem a intenção de enquadrar a narrativa de Lobo Antunes em alguma “linha” ou ciência literária, mesmo porque qualquer teorização de um texto deve partir dele mesmo, pode-se afirmar que o seu recurso estilístico assemelha-se a um estilo estético surgido nos anos 70, do século XX, que teve Jacques Derrida um dos seus mais importantes expoentes: a “teoria do texto”, ou “teoria da escritura”, que preza pelo desequilíbrio da estrutura formal da escrita; e, pela “abertura”, portanto, do signo, conforme define Roland Barthes.
Abrir o signo implica conceber o livro como um “organismo vivo”, do qual o autor é um sujeito fragmentado entre suas linhas escritas, permitindo, assim que o texto se mova, se multiplique, se mexa, fora de seu controle de escritor. Logo, nada de ponto final no texto, nada de última palavra”, rejeita-se a idéia de um significado último. Pois, em cada ponto se é possível suplementar algo mais. Algo de novo sempre pode brotar mais tarde nos interstícios do tecido, do texto “esburacado” (Barthes, 2004: 257), da “estrutura destroçada” (Derrida, 2002: 16).
É um texto “esburacado”, “sem-projeto”, “sem argumento”, que o mundo antuniano nos apresenta, no qual não há o lugar de quem fala, suspira ou questiona.
A narrativa se coloca plural, ambivalente ao dar voz às diferenciadas realidades humanas. O texto, a partir daí, adquire a forma de um objeto social (Barthes, 2004: 267-268) do qual o intelectual dispõe para problematizar questões inerentes à humanidade. Formular as respostas, as soluções para tais questões não se é permitido, pelo simples motivo do intelectual pós-moderno, neste caso, em particular Lobo Antunes, não acreditar que exista uma única e absoluta realidade ou verdade para a nossa existência.
Desse modo a consciência do intelectual da pós-modernidade, hoje, enxerga seu texto como um objeto que não mais lhe pertence, a partir do momento que se materializa. Daí, a narrativa não ser do singular, não haver apropriação do texto, porque ele se situa no “intercurso infinitivo” dos códigos, e não no termo de uma atividade “pessoal” do autor.
E, é exatamente neste enquadramento de texto que se situa Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo ao apresentar fragmentadamente o indivíduo deslocado no universo pós-colonial português e no seu próprio universo interior.
O escassamento das referências, a relativização da verdade, a oscilação entre mundos teoricamente possíveis dos relatos estão envoltos numa atmosfera “tensa”, e, por vezes, silenciosa de Boa tarde às coisas aqui em baixo.
Uma narrativa de “vozes” que gritam a flagelação humana e as suas íntimas peculiaridades; “Vozes” que revelam um universo de degradação e ruínas “morais” dos falidos: império colonial português e do sistema angolano pós-colonialismo. Esta narrativa nos conduz aos labirintos das consequências da guerra no interior humano. E, cabe ressaltar que não há necessidade de se ter vivenciado a guerra de Angola para compreender ou sentir o que uma guerra pode nos ofertar. Pois, “não somos nós, hoje, neste início de milênio, o resultado de tantas guerras?” (Antunes, 2001: 27).
Em Boa tarde às coisas aqui em baixo, a exposição da conturbação interior do homem se visualiza a partir da fragmentação não apenas da estrutura estilística, mas também, por meio da fragmentada estrutura do pensamento, do raciocínio das “vozes” que ora se manifestam, ora se calam no romance.
Além da abordagem relativizada das calamidades humanas (retratadas nas frustrações portuguesas), o romance põe em voga uma das maiores problematizações portuguesas: o continente africano. Palco de antigos conflitos entre os portugueses e os seus habitantes, como o desentendimento ocorrido no século XVIII em Angola, época do domínio da Rainha Nzinga, que chegou a realizar alianças com os holandeses para tentar expulsar os portugueses do seu território. Boa tarde as coisas aqui em baixo não se classifica como uma obra sociológica, pois Lobo Antunes não realiza um retrato da guerra colonial e dos conflitos pós-coloniais, mas se utiliza dos fatos da História para explorar a conturbação do interior humano, atitude também demonstrada nos romances: Os cus de judas e O esplendor de Portugal, dois de seus livros, os quais a estória é ambientada na África.
Através de um “verdadeiro mosaico narrativo” (Castello, 2004: 1) a estória do romance situa-se no período pós-(guerra) colonial em Angola:
Um resto de portugueses no seu sangue, não jipes na fazenda que não havia fazendas, acabaram-se as fazendas, havia miséria e fome e guerra e os portugueses substituídos por pretos agora, pretos das furnas dos musseques, ratos assustados, furtivos, subitamente imóveis diante dos faróis dos jipes [...] quando depois do que chamavam independência, isto é dos pretos a entrarem-lhes a porta e a roubarem-nos, isto é dos pretos a matarem-se uns aos outros, isto é dos pretos a transportarem sem desculpas, insultando-se, batendo-se, as mobílias, os fogões, as roupas, quando depois da independência, isto é de cantorias e batuques [...] (Antunes, 2003: 138)
Esta época retrata os conflitos internos em Luanda provocados pelos dois principais pólos políticos do país: MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional pela Independência total de Angola). Intensificando, desse modo, o vazio e a depressão da sociedade africana já tão agravada pelas consequências da guerra anti-colonial:
comboios trazendo a morte sob a forma de pretos em Luanda
ratos de esgoto, ratos
a conspirarem nos musseques, chegavam nos vagões de gado
disfarçados de carregadores, agulheiros, serventes, víamo-los
sumirem-se das sanzalas à tarde
ratos
surgiram de manhã nas bancas do mercado
ratos
juntarem-se, separarem-se, conversarem entre si em Kimbundo
ratos
espiarem à noite, pegados aos arbustos, só focinhos, só olhos
focinhos e olhos de ratos, ratos (Antunes, 2003: 65)
As titubeações narrativas são ações constantes em Boa tarde às coisas aqui em baixo: “Não sei se ela disse” (Antunes, 2003: 15). Inexatidões que se revelam em deslocamentos temporal e espacial representados, por vezes, por alguns emblemas psicanalíticos, como a casa, por exemplo:
Não sei se ela disse
– Esta era a casa (Antunes, 2003: 15)
A casa que segundo Bachelard reflete o “drama das moradas humanas”, também é um dos diagramas da psicologia que guiam os escritores e os poetas na análise da intimidade. A casa mais ainda que uma paisagem é “um estado de alma”, mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, fala de uma intimidade. De uma intimidade revelada que parece não reconhecer o seu lugar no mundo, como acontece em Boa tarde às coisas aqui em baixo. Esta inexatidão espacial do romance também pode revelar criticamente o sentimento de descaso demonstrado pelo sistema português em relação ao continente africano. Indiferença portuguesa inclusive para com os seus cidadãos que estavam a serviço da pátria em Angola.
Apesar de o continente africano ter contribuído por séculos com a manutenção do poder e da glória do império português em relação a Europa, Portugal sempre olhou com descaso e superficialidade as questões africanas. O importante para o governo português era o que se extraía de recursos valiosos das colônias, ou melhor, das ex-colônias. Comportamento predominante até os dias atuais, nos quais os portugueses com o aval dos angolanos, exploram “livremente” a “terra vermelha” (Antunes, 2003: 138) – Angola:
Porque os barcos sobem e descem via pássaros e outros barcos e árvores e gente em fato de banho quase todos brancos e alguns pretos também embora não muitos visto que ainda são pobres e a mulher do senhor estrangeiro diz que é uma questão de tempo e a minha mãe acha os pretos bebés amorosos de se comerem e queixa-se que é uma pena que cresçam a minha mãe diz que crescendo ficam feios e com um cheiro esquisito e disse ao meu pai que podíamos levar um destes miúdos giríssimos para Lisboa e aproveitá-lo depois para servir à mesa lá em casa [...] e a mulher do senhor estrangeiro disse que tem um cozinheiro preto óptimo que até comida francesa faz e com um desodorizante forte não se nota o tal cheiro (Antunes, 2003: 563)
Tal postura portuguesa apenas comprova que as histórias de Portugal e de Angola estão interligadas na narrativa de Lobo Antunes e na memória de cada português e de cada angolano. A escrita e a memória fragmentadas do romance atingem o cerne dos problemas - não somente dos portugueses e dos africanos, mas de qualquer agente da realidade. Pois, a escrita de Lobo Antunes “relampeja, faz faiscar” o conturbado interior humano nas “vozes” portuguesas e angolanas que se entrelaçam no discurso fictício da vida.
Boa tarde às coisas aqui em baixo nos remete a um encontro do africano com o angolano; do português com o colonizador; do humano com a sua conturbação interior. O que se encontra ou reencontra nesta narrativa é a fragmentada gênese humana retratada pela imagem da escrita impetuosa e sedutora de António Lobo Antunes.
Este romance rememora em cada memória, em cada voz que o lê, as marcas peculiares, singulares do homem lançado num sistema pós-moderno, como os touros que são lançados à revelia, e, sem piedade na arena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, António Lobo. Boa tarde às coisas aqui em baixo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
BARTHES, Roland. Inéditos, I: teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BLANCO, María Luisa. Conversas com António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
CASTELLO, José. África, à beira da asfixia. Prosa & Verso. Rio de Janeiro: Jornal. O globo, 17 de janeiro de 2004, p.1.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MATOS, Olgário. Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Cia. das Letras; Rio de Janeiro: Funarte, 1990.
WHITE, Eduardo. Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992.
por Raquel Cristina dos Santos Pereira
não datado
citado do site do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
Cadernos do CNLF, Série X, Número 6
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