Entrevista à Revista Época: «João Ubaldo anda um pouco preguiçoso»


Época
entrevista de Luís Antônio Giron
10 de Julho de 2009


«João Ubaldo anda um pouco preguiçoso»

O escritor português António Lobo Antunes defende a literatura como um trabalho árduo e, por isso, critica o brasileiro, que classifica como um grande autor

Na noite do sábado, 4 de julho, o público da Festa Literária Internacional de Paraty levantou-se para aplaudir a fala do escritor português António Lobo Antunes. Com os olhos cheios de lágrimas, Lobo Antunes agradeceu. Em seguida, formaram-se filas para que ele autografasse os dois livros que está lancando no Brasil: O meu nome é legião (2008) e Explicação dos pássaros (1981). Na semana passada, no Rio de Janeiro, ele distribuiu mais autógrafos e usufruiu da popularidade. Sua vinda ao país depois de 25 anos é a consagração daquele que muitos especialistas consideram o maior escritor da língua portuguesa em atividade. Tudo isso não parece surpreender a esse ex-médico de 66 anos que publicou seu primeiro livo aos 36. Rival de seu conterrâneo José Saramago, ele tem sido cogitado para o prêmio Nobel de Literatura, prêmio dado a Saramago em 1998. Mas diz não se importar com o assunto. Afinal, ele tem uma tarefa um tanto difícil para cumprir: colocar o mundo inteiro em seus livros, e mudar o estatuto do romance. Nesta entrevista, o autor inquieto e falso mal-humorado (e parecido com o ator inglês Anthony Hopkins) revela os segredos de sua arte ambiciosa e que empolga pela distância que mantém da banalidade que assola as literaturas lusófonas.

Por que o senhor não voltou mais ao Brasil desde 1983?
Porque não penso no Brasil como um país. O Brasil está nas lembrancas de minha família, nos doces, nas cocadas da minha avó Leopoldina e das minhas tias. Eu sempre tive o Brasil dentro de mim. Meus dois nomes são brasileiros. Os Lobos, fiquei sabendo numa viagem recente a Israel, eram cristãos-novos. Eles chegaram ao Brasil no século XVII. Os Antunes se estabeleceram no Brasil no século XIX. Foi meu avô Antunes quem foi explorar os seringais na Amazônia, e a família se radicou em Belém do Pará. Com a decadência dos seringais por causa da borracha de Cingapura, minha família se dispersou. Alguns foram morar no Rio, outros em Portugal. Tenho muitos primos no Rio de Janeiro. Estar aqui não é voltar, é como se eu estivesse sempre em casa. Amo o cheiro do Brasil. Ele é doce.

O assunto é poético. Mas o senhor declarou o seguinte sobre não voltar para cá: "O Brasil não tem sido minha prioridade esses anos todos. Deixei o país para o meu antípoda". Leia-se: José Saramago. Agora que seu antípoda anunciou que abandonou as letras, o senhor sente um peso de responsabilidade por ser considerado o maior escritor da língua portuguesa em atividade?
Eu declarei isso? Não sinto nada disso. Não deixei de publicar minhas coisas e ser lido no Brasil, apesar das longas ditaduras que vivemos aqui e em Portugal, ditaduras que me impediam de publicar meus livros. Quando eu não permiti que meus livros fossem publicados no Brasil, achava que não era importante porque o Brasil não é um país, é mais do que isso. Meu modo de escrever é fundado nos autores brasileiros e na minha origem. Quando ganhei o Prêmio Camões, fizeram-me crer que eu era um autor brasileiro, pelo vocabulário, o uso abundante dos gerúndios. Sinto-me um escritor brasileiro. Quem sabe eu acabe vivendo no Brasil? Tenho pensado no assunto.

Como foi a sua formação em literatura brasileira?
Li os brasileiros desde muito pequeno. Na biblioteca de meu avô António, o paraense, só havia autores brasileiros. De modo que os primeiros livros que li foram os romances e contos de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, José de Alencar, Raul Pompeia... Minha base foram os ficcionistas do século XIX. Em seguida fui aos poetas: Jorge de Lima (havia em casa uma edicão dos poemas negros dele), Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e o maior poeta da língua portuguesa, João Cabral de Melo Neto. Os poetas me influenciaram mais que os prosadores.

E por que o senhor escolheu a prosa?
Talvez por incapacidade de ir tão alto quanto os poetas. Minha prosa é contaminada pela poesia. Não faço romances, e sim livros, e muitos deles eu chamo de poesia, como o meu último livro, O Arquipélago da Insônia, lançado em Portugal no ano passado. Pretendo publicá-lo no Brasil com meu novo livro, o poema Que cavalo são aqueles que fazem sombras no mar? Minha intenção é lançar este último antes no Brasil. E é um poema. Mas não sou poeta.

Quais são seus mestres literários?
Eu poderia dizer que é [James] Joyce e brilharia. Mas, cá entre nós, Joyce é um escritor menor porque parecia usar de seu virtuosismo narrativo para se exibir. Era como se dissesse: "olha só que passagem brilhante, fui eu que fiz!" É como [Vladimir] Nabokov, um exibicionista. Eu admiro a proeza técnica, mas me irrita a proeza pela proeza. Joyce e Nabokov não seguiram o que Tolstói pregava sobre se colocar a serviço da eficácia. Eles trocaram a eficácia pelo narcisismo. Recorro sempre aos poetas latinos: Horácio, Virgílio e Ovídio. Esse trio é uma fonte de inspiracão e aprendizagem. O livro é uma estátua enterrada no jardim de Horácio. E Horácio dizia que o escritor precisava de dez horas por dia para trabalhar: duas para escrever o texto e oito para cortar os excessos. João Cabral aconselhava os escritores a cortarem na carne do texto e se restringirem ao osso. Advérbios e adjetivos são gorduras. Na poesia, cada palavra tem um peso específico. Talvez seja por isso que os poetas são os maiores tradutores. Eu adoro a tradução de Antonio Houaiss do Ulysses [de James Joyce]. É uma tradução poética genial e não muito valorizada.

É verdade que o senhor teve padrinhos literários brasileiros?
Sim. Foi o Marcio Souza, escritor amazonense, quem levou meu primeiro livro, Memória de Elefante, ainda em 1979, para seu agente nos Estados Unidos. Até então, eu era recusado pelas editoras. Só havia conseguido publicar um livro por uma pequena casa editorial - e ainda assim o editor disse que não gostava do sobrenome Antunes, que lhe parecia "nome de merceeiro". Marcio levou o livro para Nova York e é cruel perceber como lá é o centro do mundo. O livro foi publicado e obteve boas críticas nos jornais americanos. Minha sorte maior foram as resenhas feitas por dois inimigos que vêm a ser os maiores crtíticos americanos: George Steiner e Harold Bloom. Um disse que eu era excelente, outro que eu era um gênio... Dali para diante tudo ficou mais fácil, e os editores que me recusaram passaram a correr atrás de mim.

E sua amizade com Jorge Amado?
Jorge foi meu grande padrinho literário, Era um homem sem inveja, que tinha a rara virtude de divulgar e elogiar aos quatro ventos os seus amigos. Foi o meu caso. Foi ele que me apresentou a outro amigo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro, grande autor, mas que infelizmente anda um pouco preguiçoso. Jorge Amado é um escritor maior que sua obra. Infelizmente a obra está ultrapassada, embora tenha sido importante como instrumento de resistência e crítica nos anos de ditadura em Portugal. Ele sofreu muito também com a crítica, que preferia Graciliano Ramos.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa pode facilitar a divulgação de obras entre os países lusófonos?
Não, é um mero acordo que atende a interesses políticos. Não vejo qual a vantagem de unificar o português. Temos diversos tipos de português. O da África é riquíssimo e só se beneficiou de suas particularidades. Veja os poetas de Angola ou o José Craveirinha de Moçambique. Cada um que escreva a seu jeito, e será compreendido. A língua é o único patrimônio que nossos países possuem. Para que empobrecê-la com regras ortográficas?

O senhor gosta da literatura contemporânea?
Estou pasmo com as besteiras que publicam por aí. Mesmo em Portugal hoje é moda publicar mistérios em torno da religião e outros enigmas. E há a literatura feminina que trata de assuntos idiotas. Fico pasmo como esses escritores não sabem o que é escrever. São rarísismos os bons livros hoje em dia. Os autores novos já querem se apresentar como produtos vendáveis, não como autores de fato. Mas não demora aparecerem os grandes autores. É questão de tempo.

O senhor acha que a crítica ajuda na descoberta de autores importantes?
Não leio os críticos. O instrumento principal deles é o adjetivo. Ninguém é tão cruelmente crítico como você mesmo. Eu desenvolvi minha própria técnica lançando um olhar severo sobre o que eu escrevia.

Onde o senhor busca inspiração?
Essa história de inspiração pode acontecer nas coisas mais improváveis. Picasso dizia que a inspiração ia embora quando ele comecava a trabalhar! Posso ter uma ideia lendo o Pato Donald, Tarzã, Sandokan. Eu li Monteiro Lobato na infância. É algo incontrolável. O que importa é querer superar os modelos, querer fazer melhor que eles.

Como o senhor escreve?
Preciso de pelo menos quatro horas diárias para escrever, a caneta. Nesse período não posso ser interrompido. Escrevo sem pensar. Antes eu montava os projetos de livros com personagens e um resumo de cada capítulo. Hoje não planejo nada, parto de nada. É como se me deixasse levar por uma mão misteriosa. Gosto do estado crepuscular, entre o sonho e a vigília, em que você não sabe exatamente onde está - e as ideias surgem, vêm à tona. É por isso que, quando interrompo o trabalho, gosto de deixar a frase ao meio, para poder retomá-la no dia seguinte. É mais fácil do que ter diante de si uma frase, um capítulo acabado - e daí ter aquela paralisia da página em branco. Adoro escrever quando estou cansado. É no cansaço que as boas ideias aparecem.

Em O meu nome é legião, o senhor usa uma linguagem abrupta e uma situação-limite: um grupo de jovens pobres que sai pela noite de Lisboa praticando crimes. É um livro diferente dos seus anteriores, mais autobiográficos ou ligados às guerras coloniais, não? A violência está mais presente.
Usar uma situação-limite torna o trabalho do escritor mais fácil, porque ele não precisa perder tempo com detalhes. A situação-limite fornece um campo de imantação na história. Gosto disso. Meu livros têm conteúdo de vivência pessoal e todo livro é o resultado da vivência, não um retrato dela. O meu nome é legião é uma história que já vinha sendo gestada nos outros livros, cada obra minha contém o germe da outra. A história desses meninos pobres, todos negros, que são obrigados a viver da violência, se repete no mundo inteiro, em Lisboa ou Rio de Janeiro. O que quis mostrar é como eles são famintos de ternura. Ao praticar toda aquela barbárie, eles estão mendigando carinho.

Como o senhor define sua obra?
Eu não entrei na literatura para ser um escritor qualquer. Quero ser maior que Tolstói e Joyce - e acho que todo escritor tem de pensar assim, senão ele não produz nada. Ele tem de pensar em coisas grandes. Comecei a escrever porque queria revolucionar o romance, subverter a literatura, transformá-la em algo que ainda não existia, ofuscar os antepassados. É assim o meu projeto. Quero colocar tudo num livro, o mundo inteiro, minha vida inteira. Quero praticar a obra de arte total que imaginava Richard Wagner. Escrevo livros impossíveis. Se me ocorre uma história que me sinto incapaz de formular, é aí que começo um livro. Quero escrever sobre o que não entendo, sobre o que não tenho competência. É assim que vou contornando os problemas, e chamam isso de estilo experimental. Na verdade, é uma atitude de enfrentamento. E de liberdade. É por isso que não creio na profundidade. O que existem são infinitas superfícies superpostas. Quando você se aprofunda demais em um assunto, acaba saindo pelo outro lado, de mãos abanando. Escrever é um ato impossível porque tudo o que interessa vem antes das palavras, como as intenções, os desejos, a loucura. Os poetas são maiores porque conseguem transferir essas coisas inomináveis para as palavras. Mas escrever também é um ofício, como o de médico ou de carpinteiro. É preciso conhecer a técnica, para abandoná-la. Todo grande livro é uma reflexão profunda sobre a arte de escrever. Cada livro meu tem de ser um mundo.
 

10.07.2009

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