Tiago Sousa Garcia: opinião sobre O Arquipélago da Insónia
A obra de António Lobo Antunes nunca será consensual. O Arquipélago da Insónia não é ainda a obra que marcará a unanimidade de opiniões à volta do autor. Quem gosta continuará a gostar, quem detesta tem mais um livro para deitar à fogueira.
O livro questiona a tradicional divisão literária. Não será dramaturgia, lírica também não. Sobra a narrativa – e como encaixá-lo? Romance talvez seja o mais próximo, mas nada há aqui de romance. É, por assim dizer, um livro inclassificável.
O enredo, chamemos-lhe assim, conta a história de uma família burguesa, dona de uma herdade no Ribatejo. Como as fotografias que estão na sala da casa, o livro retrata três gerações. É difícil identificar a que geração pertence cada personagem. As palavras não seguem qualquer tipo de ordem cronológica, cenas de hoje misturam-se com cenas de ontem, os que permanecem vivos são muitas vezes interrompidos por lembranças dos que já morreram. Nas páginas de O Arquipélago da Insónia está a biografia da família, desde o crescimento da herdade pelo braço do Avô e do seu amigo de infância, que se tornou no feitor, até ao declínio e à inexistência com que chegou aos seus netos. É pelos olhos de um desses netos que o leitor vê grande parte da acção. Pormenor de fundo, esse neto não tem uma mente comum, subentende-se a certo ponto que sofre de autismo. Pormenor que se torna num dos pontos mais importantes do livro.
Enquanto está a olhar para uma fotografia do seu irmão, o narrador salta repentinamente para a recordação de uma história de infância do avô, para logo depois passar para uma memória da sua própria infância, para em seguida se lembrar de uma criança que amava, Maria Adelaide, e que acredita piamente que está morta mesmo sabendo que está casada com o irmão. Este alucinante trocar de acção é substituído, no terço final do livro, por visões mais comuns, por assim dizer, de alguns dos outros membros do clã.
É, sem dúvida, fascinante a maneira como Lobo Antunes simula o trabalhar de uma mente especial. O grande ponto negativo – será que queria mesmo escrever ponto negativo? – é que este não é um livro de boa digestão. É absolutamente desaconselhável interrompê-lo a meio de um capítulo, corre-se o risco de perder completamente o fio condutor que, vai-se a ver, nem existe. Por outro lado, os capítulos, quase estanques entre si, podem ser lidos e relidos isoladamente sem grandes perdas.
A magia dos livros de António Lobo Antunes é que são quase peças de arte. Cada vocábulo tem o mesmo valor lido individualmente ou numa frase, cada palavra é burilada até à exaustão, um trabalho quase silencioso que não escapa aos olhos de ninguém.Percebe-se que onde está aquele verbo não poderia estar outro, onde está aquele substantivo não há lugar para mais nenhum. Talvez por isso as palavras e as expressões se repitam ad eternum, estão perfeitas, não há necessidade de procurar outras. Dizem uns. Outros dizem que Lobo Antunes escreve o mesmo livro há trinta anos. Indiferente a O Arquipélago da Insónia é que ninguém fica.
por Tiago Sousa Garcia
2009
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