Ricardo Daehn: Travessura de Lobo (sobre Conhecimento do Inferno)
Há mais de 15 anos um nome corrente nas especulações em torno do Prêmio Nobel de Literatura, o lisboeta António Lobo Antunes não é figura festiva como o compatriota José Saramago e, ao mesmo tempo, não se revela pessoa fácil. A escrita que comete, com criatividade única e por vezes incompreensível, pode dar a medida da sua personalidade: Lobo Antunes não se rende ao aclamado Philip Roth, muito menos admira as histórias “bem contadas” do canadense Saul Bellow (Herzog). Só abre exceção quando trata-se de García Márquez, que trouxe “novidade” ao meio literário.
À frente de 18 romances (o mais recente Ontem não te vi em Babilônia), Lobo Antunes traz espírito crítico que não poupa nem a si próprio. Recentemente lançado no Brasil, com mais de 25 anos de atraso, Conhecimento do inferno, porém, passou relativamente ileso à revisão criteriosa do autor, tido como “mal entendido” à época da primeira publicação. Curiosamente, os dois volumes que o antecedem numa trilogia (Memória de Elefante e Os cus de Judas) ganharam, respectivamente, defeitos de “livro de principiante” e “primário”.
Exageros à parte, vale lembrar que o primeiro título (com citação em Conhecimento do inferno, ao lado de Paul Simon, Gal Costa e António Lobo Antunes[!]) já trazia o alter ego do psiquiatra atolado numa narrativa com tempo comprimido. Num único dia, a lentidão retinha observações em torno do casamento falho e da separação das duas filhas. A desilusão pessoal chegava a retrair o aspirante a escritor, empacado na produção de um romance. Organizado em capítulos (de A a Z), Os cus de Judas depurava a decisiva experiência involuntária de haver integrado a Guerra de Angola, nos anos 1970, fato explorado ainda por O esplendor de Portugal.
Enclausurado num universo aturdido pela eterna convivência com mortos no conflito, emConhecimento do inferno, Lobo Antunes prorroga a tensão bélica, lembrando inclusive das “galinhas de África, magras e pernaltas, de que as patas hesitam um segundo antes de tocar o chão como se um perigo qualquer as ameaçasse”. Amálgamas sacramentados na literatura dele, as seqüelas da pressão do regime salazarista e o processo de independência de Angola (antiga possessão portuguesa) engordam a convulsiva retórica do livro.
Na publicação auto-referente, o escritor é objetivo nos alvos de ataque: mira tanto a infra-estrutura quanto a petulância médica instalada nos manicômios. Ele descreve a chegada ao Hospital Miguel Bombarda (onde, de fato, clinicou) como ponto de partida para “a longa travessia do inferno”. Compactuando com a “máquina trituradora de uma medicina persecutória da fantasia e do sonho…”, desmoraliza a sensação de autoridade impregnada nos colegas médicos. Desequilibrando conceitos de loucura, propõe até a inversão de papéis, tendo a impressão de que eram os doentes “quem tratavam os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras”.
Coerente com alumbramentos da demência externa, o autor encoraja devastador ataque sobre princípios lógicos. Nada vem muito alinhavado por uma fluência necessariamente lúcida. Ciente da conquista do “sentido prático da vida, que fica no fundo do automatismo da inutilidade…”, o português se debate na aceitação do “enxoval de uma ciência inútil (a psiquiatria)” integrado por “pastilhas, ampolas, conceitos e interpretações”.
Isolado numa batalha um tanto quixotesca – mas com o respaldo de que “a solidão é o azedume da dignidade” –, o escritor lança mão de severidade, demonstrando que “os manicômios não passam de hortas de repolhos humanos…”. Conhecimento do inferno traz imagens potentes de médicos que enxotam pacientes ou se rendem a alegorias canibalísticas envolvendo os doentes. Para o psiquiatra que abandonou o celibato a favor da literatura, “os psicanalistas continuam teimosamente agarrados ao antiquíssimo microscópio de Freud, que lhes permite observar um centímetro quadrado de epiderme enquanto o resto do corpo, longe deles, respira, palpita, pulsa, se sacode, protesta e movimenta”.
Estilhaços de ironia
Fragmentadas, feito espasmos, as descrições do livro sofrem interferência concomitante de eventos paralelos, que afloram via lembranças, devaneios ou por meio de elaboradas análises das circunstâncias recém-presenciadas. Sempre espirituoso, o texto é caudaloso em ironia, com disparates da altura de “nunca conheci nenhuma flor de plástico que se comovesse diante de um cadáver”.
O deboche avança sobre a propalada perfeição de casamentos, na trama. A sensação de liberdade, por exemplo, se contrapõe à figura do narrador que se confessa “esporeado por uma mulher autoritária, apavorado com o sábado depois do jantar em que ela me devorará, na cama, com as gigantescas mandíbulas da vagina, obrigando-me a suar sobre a geléia do seu corpo a ginástica do desânimo conformado”. Cada vez mais próximo do destino final – a Praia das Maçãs –, o autor que perfaz trajeto nas estradas ao sul de Portugal segue apedrejando a instituição matrimonial, fabulando em torno dos casais estáveis vistos num balneário do percurso: “Os roupões pendurados lado a lado nos grampos da porta, debaixo do preço da diária encaixilhada como um retrato de família, prolongam uma ilusão de vida a dois que as dentaduras, pousadas sem vergonha na mesa de cabeceira, desmentem cruelmente com os seus risos de plástico”.
Um tanto desnorteado, o leitor pode vir a estranhar o enriquecedor recurso do escritor de promover ciranda aleatória entre narradores, sem exata delimitação. Chegando às vias de ser confundido até com um paciente, Lobo Antunes – repleto “de maldade e de terror”, qualidades intrínsecas dos comparsas de guerra – estimula o leitor, a cada página, pela tendência aos fluxos de monólogos ensimesmados, uma vez que os personagens se revezam na descrença da capacidade do diálogo. Daí vem o espanto com o desfecho comedido na ternura, mas que sepulta todo o desgaste do escritor com o manicômio. Por incrível que pareça, o autor ganha a provisória companhia de crianças e animais que, na sua visão, “se afastam do asilo como se afastam da morte empurrados por um misterioso receio, a recusa da agonia, da putrefação, dos sentimentos fúnebres e mórbidos que os habitam”.
Ricardo Daehn
em Correio-Web (Brasil)
2007
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