Sílvio Mendes: opinião sobre A Morte de Carlos Gardel
Espanto, fascínio. Das palavras mais barrigudas, porque compostas por justa-precisão.
É justo que as gaste em elogios às garras do Lobo. Associadas a este António é impossível que se gastem, na verdade. Numa verdade que não se impõe, nem na pretensão de sonhar imposições, de tão humilde que é, a verdade, tanto que nem chega a ser certo que não nos minta a todos. Renovam-se a cada estucada selvagem da pata do escravo literário, escravo livre, mas escravo, linha a linha, descarrilada ou nem por isso, verbo a verbo, na conjugação de espinhos e de lanças.
Espanto e fascínio mas sem doçura. Vida dentro de cabeças que a perdem sem saber. Vida a marcar passo nas árvores de Lisboa, no barco que avança sobre o Tejo, vida que avança sobre o escuro, para a morte, vida que pára, parada até à morte. Não dócil, não doce e, parando, livre. A morte de Carlos Gardel não sei o que é. Porque ele está vivo, como é sabido, os aviões não caem e, se caíssem, não seria para o lado terrestre. A lei da gravidade nasce invertida para os que voam. E, portanto, a morte de Carlos Gardel (o maior cantor de tangos de todos os tempos!) só pode ser isso, uma órfã das coisas que não são.
Entre uma homenagem (disfarçada? assumida? qual homenagem qual quê? o Tejo é uma grande lágrima de um só homem) ao grande cantor da brilhantina no cabelo e uma Lisboa sem pele, uma Lisboa que só vive dentro de cada dor, na esfera do inalcançável sentimento de cada ser humano, estaciona esta obra de António Lobo Antunes. Dito por não saber o que é, ainda não, nunca saberei o que é. Obra inadaptável para qualquer outro formato (impossível filmar o pensamento, impossível cantar a perna que balança, o pedaço de perna nu entre as calças e as meias, enquanto os braços agarram o jornal), onde nada é externo, apesar dos prédios, das árvores, da descrição do Tejo e dos palhaços de porcelana, apesar dos nomes de ruas, das espécies de verdura, tudo é memória, tudo vive dentro. De cada abraço falhado por falta de coragem, de cada canção de Gardel, do Livro.
Por una cabeza, Milonga Sentimental, Lejana Tierra Mial, El dia que me quieras e Melodia de Arrabal – cinco celebrações de alma do mago de Buenos Aires - dão nome e timbre e luz e drama e trovões de demência e ternura e sal e bico de pássaro (não pares de cantar, por favor) aos cinco capítulos. Dentro deles (sempre dentro, nada é externo) há a personagem, esquecida da vida, como um corpo esmagado pela cabeça demasiado pesada, que só encontra o nascer do sol num disco de Gardel (homenagem disfarçada ou assumida?), volume máximo, vizinhos a barafustar com vassouras contra a parede, contra o chão e contra a sanidade. E depois, e antes, e sempre, a morte de um rapaz como epicentro – a morte dos que ficam sem saber viver. O combate das emoções às escuras. Um apaixonado por Gardel e outras tantas que nem tanto. Sempre num discurso de dentro, em primeira pessoa, em várias primeiras pessoas que se cruzam no tempo numa convulsão de memórias e emoções e sensibilidades. Para cada uma, um por do sol diferente. A vida não lhes foi prometida com as mesmas cores. E a morte, a vida, um livro cru, na asfixia das páginas.
«Não estou a ser cruel no livro, estou a dizer como é», afirmava Lobo Antunes ao Público, em Abril de 1994. E esse “dizer como é” fica atravessado na ressaca de querer ler mais. Espanto, fascínio – mas dói.
por Sílvio Mendes
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