Eunice Cabral: sobre Ontem Não Te Vi Em Babiblónia
Terrenos baldios
Os leitores de António Lobo Antunes já perceberam que, sobretudo desde Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo (2003), o universo ficcional do autor se tornou denso, apesar da aparente simplicidade no registo da linguagem oral, e impenetrável a uma só leitura. Nessa medida, o último romance publicado do autor, Ontem Não Te Vi Em Babilónia, confirma esta última tendência da sua ficção. Um dos trabalhos da interpretação deste romance consiste em perceber o mundo em que o romance como texto literário projecta para fora de si mesmo pelo movimento de autonomia típico da arte. Esta declaração acaba por se juntar àquela noção, bem característica do percurso da literatura do século XX (período no qual ainda nos situamos), que afirma que a obra de arte, de facto, pertence a uma entidade suprapessoal (à própria obra do autor entendida como um macrotexto dotado de autonomia, à crítica, à teoria) e não apenas a uma assinatura, a um nome claramente identificado como sendo o do seu autor. Em suma, não há autor mas textos, assim como não há só texto mas interpretação como parte integrante do mesmo. Apesar de esta ser uma afirmação característica daquele pensamento estético que, aos olhos de muitos dos leitores desta obra, pode parecer «linguagem especializada» de estudioso da literatura ou de crítico, é de notar que o próprio António Lobo Antunes a verbalizou recentemente, de forma semelhante, no tom de desprendimento usado frequentemente por todo o criador de arte: não é verdade que este escritor, numa entrevista dada em Abril de 2006 a Ana Sousa Dias para a RTP 2, disse que sentia que os seus livros eram cada vez menos dele, autor, e que eram escritos por uma mão - a sua, visivelmente - que ia escrevendo um texto que poderia ser considerado de outros? Esta espécie de impessoalidade é uma das realizações efectivas de Ontem Não Te Vi Em Babilónia, revelando-se na atenção ao silêncio, às perturbações da linguagem, à intransmissibilidade da experiência humana.
As falas, neste romance, resistem a um discurso comum e maioritário; dizem, insistentemente, a diferença, sem que esta chegue a ser ou a construir uma ou várias identidades reconhecíveis como tais. Trata-se de uma impessoalidade que vem muito depois de um período (o início da carreira literária deste autor) em que os romances eram fortemente autobiográficos, tingidos por uma «exibição» muito bem conseguida (porque articulada de modo original) de referências constantes à cultura, não apenas portuguesa mas ocidental (escritores, obras literárias, pintores, filmes, actores, figuras icónicas, etc.) e, ainda, de dados de uma contextualização socio-histórica perturbante e, por essa razão, vulneravelmente formulados, trazidos para a literatura portuguesa em primeira mão, actualizando-a, nesse sentido, de forma feliz. A figura central do narrador-protagonista era a de alguém que se encontrava no lado errado da realidade portuguesa, depois da avalanche dos vários desastres que assolaram as masculinidade portuguesa: o retorno da guerra colonial (entretanto, descrita em toda a sua crueza), o divórcio, a estranheza da terra de origem, a deriva por bares e por espaços tornados irreconhecíveis, a noite inabitável, o dia cinzento repartido entre o emprego e áreas em reconstrução difícil de vida, ainda informes, a desolação da pertença a uma geração perdia, o amor transformado em indiferença e em impossibilidade, a ausência de referências e de pontos de apoio num tempo de marcos desgastados.
De facto, uma das razões da notoriedade desta ficção é a capacidade de inovação na verbalização frontal de um mal estar, muito português, ao qual os romances antunianos têm vindo, ao longo de quase três décadas, a dar corpo e fala. Também já conhecíamos a veia burlesca e satírica, medonhamente lúcida dos primeiros romances do autor, que se expande em realizações memoráveis nas obras da década de 90 de Novecentos, em que uma parte da sua pessoa real se jogava ficcionalmente, com muito arrojo, reescrevendo, de modo oblíquo, algumas facetas autobiográficas anteriores. Outros são romances que regressam ao passado português, partindo de um ponto de vista profundamente desencantado mas simultaneamente irónico e paródico. Entretanto, para além da capacidade de inovação constante, não há nenhuma outra semelhança entre o último romance de António Lobo Antunes e, por exemplo, o primeiro, Memória de Elefante(1979). Nesse sentido, este último romance situa-se nos antípodas dos três primeiros publicados nos quais o protagonista, médico perdido no labirinto da vida moderna, dada com justeza como demasiado complexa, formulando a angústia portuguesa desses anos nos termos da constatação espantada e inconformada: «Se calhar é isto a vida.» A deriva individualizada do único narrador revela-se um trajecto que ambiciona mais do que aquele tempo presente pôde dar e é dito num registo de solidão e de desgraça que se expande nas citações urbanas, modernas e culturalizadas de todo o romance: o amigo é Max Brod, o narrador é Franz Kafka, uma doente mental é Charlotte Brönte.
Nenhum dos tópicos, nenhuma das imagens, apresentados neste último romance, tem sequer uma remota parecença com o que costumamos chamar «cultura». O que é narrado - não por um único narrador, mas vários, sem hierarquia entre si - decorre das vísceras das personagens, numa noite assombrada pelas «verdades»nunca confessadas no que têm de mais cru e vil. As vozes deste último romance respondem que já estamos «perdidos» desde sempre e que é isto mesmo a vida. A única esperança vem do título, que é uma frase enigmática, aliás, sem a mínima relação com o texto do romance: quem diz «ontem não te vi» é alguém que esperava ter visto outra pessoa; teve a expectativa de avistar outra, num determinado lugar. E, ainda por cima, confessa confiantemente essa expectativa, que se malogrou, à outra («ontem não te vi em Babilónia»). Ora, todo o discurso do romance nega qualquer saída positiva, ao inscrever uma incomunicabilidade irremediável: encontramo-nos miseravelmente sós, às voltas com partes de descrições da realidade e de nós mesmos, sem ninguém à nossa espera. Neste último romance, o discurso é o do inferno português, a vida interna sombria e anónima, os seus crimes afectivos, desamorosos, as suas ausências em relação aos outros e a si mesmo. Para contar este inferno, o romance não usa nenhuma referência culturalizada que pudesse servir de caução a tanto sofrimento; apenas surgem, aqui ou ali, referências de passagem ao contexto político passado, cheio de fealdade e de horror (a prisão dos opositores ao regime salazarista, o forte de Peniche, o comunismo percebido como um «crime» por um dos protagonistas). A realidade narrada é feita numa tonalidade viscosa, apresentada em frases e palavras ditas sem premeditação ou consciência da sua significação ou mesmo do seu alvo, pairando num registo fantasmagórico à procura, por vezes, de ecos de uma unidade perdida. A desagregação é uma característica constante no «dizer» de todos os narradores que «entram em cena», fazendo «jorrar» discursivamente a suas vidas, ao sabor de uma noite de insónia e de torpor, entre o estado semi-acordado e o adormecimento, sem que o alívio do sono alguma vez chegue.
Se o leitor desejar tréguas ou uma nesga de esperança, terá que imaginar outras paisagens a partir do título, passando por todos estes terrenos baldios e aceitando, desde já, que esta falta de vínculo entre o romance propriamente dito e o seu «nome» é significativo. De facto, uma das razões de ser da arte é a resistência à comunicação, à mediação que submerge todos os fenómenos na homologação e no nivelamento, é a afirmação intransigente da autonomia da proposta artística. Neste caso, os romances de António Lobo Antunes resistem de um modo ostensivo à tendência dos circuitos da comunicação, a da dissolução dos conteúdos, pela afirmação de um outro tipo de discurso fundado na palavra que institui um mundo do «desinteresse interessado», o estético. A última proposta literária do autor, Ontem Não Te Vi Em Babilónia, resiste a um mundo completamente integrado e homogéneo em que os conteúdos se apresentam como uma mera execução de um programa pré-estabelecido pela representação da identidade e não da diferença. A diferença - encontrada no trabalho de escuta de que é feito, também, o texto literário - faz-se pela discordância, pelo conflito e pela aspiração ao que é árduo e difícil. Face e contra a arte como mercadoria (variável segundo os circuitos pelos quais vai existindo), este romance estabelece uma determinada relação com a sua leitura, a que se dispões a admitir os vazios de significação, o inexprimível. Simples sinal de distinção provocado pela dificuldade real da leitura? Não parece ser assim. O que define uma relação diz respeito ao que não é da ordem da necessidade, ao que não se encontra determinado de fora. Desfazer, deslocar o sentido parecem ser propósitos mais eficazes da obra artística, e que produzem uma experiência que tem efeito no leitor: obra literária e a vida são começo, devir, caminho ainda não trilhado no desconhecido. Desta dificuldade e deste tempo preenchido pela leitura (necessariamente longo), decorrerá, por isso mesmo, um melhor conhecimento do que no humano existe de maninho, de baldio, de selvagem. E a esperança, que este romance cria no leitor que se dispõe a escutar este texto - talvez acabando por se situar na improbabilidade definida pela última frase do romance: «porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro» -, só virá depois do reconhecimento da estranheza do inferno de uma noite habitada por várias vozes narrativas. Qualquer esperança só se vislumbra, sempre, depois do inferno.
A estrutura externa do romance é constituída por seis partes correspondentes à duração de uma noite, desde a meia-noite às cinco horas da manhã, o tempo presente aglutinador de falas de personagens que vão dizendo o seu mundo entre consciência e inconsciência. Nem esta noite se fez para dormir, nem para amar; fez-se para exprimir o ódio, o ressentimento, a desistência, a dor que entorpece qualquer vislumbre de sentimento positivo, numa espécie de duplicação deslocada e extemporânea da existência intra-uterina, pertence ao domínio da mucosidade, de prematuração de que a vida humana é também feita pelo inacabamento de que dá provas constantes. As vozes narrativas procuram, parecendo já desesperar, um sentido de vida que escapa logo que se põe em marcha; daí a necessidade da recorrência, da repetição dos nomes próprios, das designações de parentesco (pai, mãe, filha, avó), de palavras e de frases como gritos de um socorro que nunca virá. As personagens estão ligadas entre si quer por laços familiares, quer por proximidades criadas pela actividade profissional mas nada as vincula umas às outras excepto um isolamento a que nada nem ninguém consegue pôr cobro. Uma doméstica de nome Ana Emília, um ex-polícia da pide, a sua mulher, enfermeira num hospital de província chamada Alice, a irmã daquele são os narradores principais de existências que germinam na maior das sombras, a ausência de esperança. As personagens femininas são as que se aventuram mais ousadamente no domínio do que se convencionou chamar "amor": no presente nocturno, este é recordado através de cenas obsidiantes e recorrentes, sempre portadoras da inércia e da rasura de humanidade. Da falta de «amor», resta, por exemplo, uma mulher baixa, gorda, grisalha, que dá de comer às galinhas, batendo numa lata, a chamá-las ou, então, surge uma das personagens masculinas para quem o «amor» é um rosto desconhecido, projectado no estore, o único ser por quem é capaz de soluçar de amor.
O suicídio de uma rapariga de quinze anos que diz que vai ao quintal enquanto espera que a chamem para jantar, que lança um fio de estendal de roupa numa macieira, que sobe a um escadote que derruba em seguida enforcando-se e que deixa como mensagem final uma boneca sentada na relva é o acontecimento central do romance. Apesar de quase todos os narradores (excepto dois) recordarem pormenores desta cena (são ao todo oito os narradores, relacionando-se entre si), é uma ocorrência inexplicável, que aparece e desaparece nos discursos que a vão rememorando distorcidamente como um conjunto de gestos cristalizados, intensos nas suas trevas enigmáticas, no seu poder negativamente simbólico: é boneca que gira em vez da rapariga, é a mãe da rapariga que a imagina , ainda viva, a regressar do quintal, sentar-se à mesa e jantar; é o pai (cuja paternidade é apenas hipotética) que se lembra do desconforto sentido ao comprar aquela boneca e de a ter oferecido sem convicção. O quintal torna-se, entretanto, o lugar da casa do qual alguns saem, à socapa, sem serem vistos, assumindo-se, não como visitas, mas como gatunos de intimidades. O suicídio é o episódio basilar desta comunidade de participantes involuntários de um serviço fúnebre no qual nenhum conhece o seu lugar ou a extensão da sua contribuição. Este acontecimento traumático cria correspondências nas configurações das várias consciências das personagens do romance, sendo que cada uma delas apresenta dados divergentes do que aconteceu. É, por esta razão, uma ocorrência que desarticula, que amontoa, que desarruma factos, que dá a ver a insensatez do que se empreende na vida, que desune e que «mata» silenciosamente quem a pensa e quem a recorda. Um suicídio é uma transgressão em relação ao mundo humano: é um acto que representa a quebra de um compromisso que a vida estabelece com cada pessoa: continuar a viver, aconteça o que acontecer. O suicida, considerando que «não foi tido nem achado» na celebração desse contrato, rompe com o pacto fundador; ao perpetuar-se na memória do que lhe eram próximos, confere à vida, depois do seu desaparecimento da face da terra, um halo sobrenatural e fantasmagórico que o existir efectivamente tem mas do qual nos esquecemos, um e outro dia. A intensidade emocional que o suicídio lança à sua volta, desagregando a comunidade familiar, fá-la viver uma «travessia do deserto», que é, neste romance, esta noite em que cada personagem se diz, se explica através de um registo de violência. De facto, o que é narrado é da ordem da ferida por sarar, dos acontecimentos percebidos como corpos estranhos, sem que haja a possibilidade de os integrar, elaborando-os. A impessoalidade, referida no início, expões o desespero, não oferecendo soluções de superação: resta a luz indecisa, contudo persistente, do título do romance.
artigo citado do Jornal de Letras, nº 941
Outubro de 2006
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