Isabel Lucas: sobre Ontem Não Te Vi Em Babilónia
Cabeças que não dormem
O novo livro de Lobo Antunes passa-se numa noite de insónia. Uma torrente de memórias não filtradas de gente ao adormecer.
"Chamo-me António Lobo Antunes, nasci em São Sebastião da Pedreira e ando a escrever um livro." É um dos momentos em que a realidade irrompe pela ficção e acentua a ideia de delírio. É António Lobo Antunes o autor, narrador e personagem no seu último romanceOntem não te vi em Babilónia, o 18º desde a estreia em 1979 com Memória de Elefante. Um Lobo Antunes triplo que dura o tempo desta frase, ainda que o autor se vá sugerindo noutras ao longo das 479 páginas desta ficção que dura uma noite.
É uma frase entre parêntesis que aparece no texto ao fim da noite. Ou seja, um aparte próximo do fim do livro. É o fim de uma noite de insónia que vai longa e começou com quatro personagens a tentar adormecer à mesma hora em lugares diferentes. Lisboa, Évora, Estremoz, Portalegre... Estão sozinhas com as suas memórias e inquietações numa vigília que se vai tornando mais delirante, por vezes quase demencial, à medida que a madrugada avança.
Da meia-noite às cinco da manhã uma mulher que perdeu uma filha, outra mulher que nunca teve filhos, um ex-polícia do antigamente e um ainda mais antigo proprietário rural vão desfiando as suas vidas numa catadupa de lembranças que não passam por qualquer filtro. E o único fio condutor dessa narrativa - que são, afinal, várias, fragmentadas -, é feito das imagens e das vozes (a dos que já morrerem e a dos vivos) que surgem comoflashes na desordem da insónia. A memória na sua cadência onde todos os tempos se misturam para contar o tempo de um país. "(o que é a memória santo Deus, zonas até então ocultas à mostra com que intenção, que motivo...)", interroga-se alguém, e outra vez os parêntesis, numa interrogação que não espera resposta porque esta história, estas vidas também se contam com silêncios e no desfilar do dito e não dito se apreendem as relações entre os vários insones.
O livro está dividido em horas que, por sua vez se dividem por personagens, em sub capítulos. Além dos dois homens e das duas mulheres, surgem pontualmente outras personagens, na sua falta de sono, todas se contam na primeira pessoa. Por exemplo Ana Emília, a que perdeu a filha, e que à uma da manhã se pergunta "serei a única pessoa com nome neste livro?", sem saber de Alice, a quem o sono também não chega numa cama longe dali. E é a mesma Ana Emília quem fala dessa fronteira sono/vigília, um tempo que transforma as coisas: "quando estou muitas horas acordada a minha cara principia a tornar-se da mesma matéria que as coisas do escuro e deixa de ser cara, os braços deixam de ser braços consoante os móveis deixam de ser móveis e perderam o nome". Ela que depois dirá: "é possível que por estar acordada há muitas horas suponha coisas que não há..." É neste tempo entre o sono e o sonho que decorre o livro.
António Lobo Antunes terminara o romance quando se deslocou a Jerusalém para receber um dos mais prestigiados prémios literários a que foi dado o nome dessa cidade. Foi em Fevereiro de 2005. Ainda não havia título para o livro, o mesmo livro que o António Lobo Antunes nascido em São Sebastião da Pedreira escreveu andar "a escrever", incluindo-se a si nessa escrita. O título ocorreu-lhe justamente em Jerusalém, ao ler uma frase em escrita cuneiforme gravada numa placa de argila com a data de 3000 a. C. A frase era "Ontem não te vi em Babilónia".
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por Isabel Lucas
artigo citado do suplemento 6ª, do Diário de Notícias
20.10.2006
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