Mario Merlino: opinião sobre Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura
Como se lendo a noite fermentasse
edição Siruela (Espanha), 2002
Em português, o título tem sete palavras: Não entres tão depressa nessa noite escura. Sete, como os dias da criação que servem de tecido base, linha divisória entre as partes do extenso relato de António Lobo Antunes. Em castelhano são oito, por ser língua menos rica em contracções. Neste caso o tradutor não encontrou melhor saída que a literal, porque o título acarreta estas palavras.
NÃO. O "não" da desagregação. Uma personagem, Maria Clara, que se dispersa nas vozes das outras, que se escreve a si mesma e escreve os outros como se fosse eles, como autora do universo. O "não" que impõe limites ao leitor para que substitua a preguiça por outro prazer talvez mais voluptuoso: o de deixar-se levar, fazer do seu corpo o corpo de Maria Clara que por sua vez é feito dos fragmentos de outros corpos. O "não" da atenção dispersa, o não do abismo que alude a si mesmo uma entrega amorosa. De modo que, leitor,
NÃO ENTRES como quem espera acção e mais acção, movimento exterior, sacudidas, superação heróica de abismos insondáveis, maiúsculas de triunfo. Sê tu Maria Clara, que é dizer Virgílio e Dante ao mesmo tempo no seu trajecto pelo inferno, agridoce jardim das delícias, ou as figuras femininas e as masculinas.
NÃO ENTRES TÃO firme. Abandona a ideia de firmeza. O mundo é resvaladiço. Este romance é um poema e oferece um formoso exercício de leitura poética da prosa ou, as you like, leitura prosaica da poesia.
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA. Ou fá-lo sem pressa e sem pausa. O melhor que estas páginas têm é que chovem todo o tempo. Chove a dor e os maus tratos. Chove «Maria Clara-o-homem-da-casa». Chovem as doces dolentes palavras da delicadeza: «A velha senhora pediu um dedo de vinho da Madeira às escondidas. Metade derramou-se no colo, mas a metade que sorveu deu-lhe ânimo». A humidade é coisa poética. Por isso
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA obra intitulada em castelhano No entres tan deprisa en esa noche oscura. Faz o seguinte: inicia a viagem num comboio que pare em todos os apeadeiros. Toda a leitura é uma viagem. O poema de Lobo Antunes, distribuído pelos sete dias da criação, brincou com o rigor perverso do mito: uma semana, sim, mas impregnada de todas as turbulências, os arrebatamentos, o caos oportuno e inoportuno da consciência.
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE. Ou inventa a noite que quiseres. Ao fim e ao cabo, ao princípio foi o caos e as trevas. E se a morte está ao virar da esquina, também nos resta fazer da vida uma «desordem prudente» ou uma «ordem demente».
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA, porque a noite fermenta, como a escrita, como o poema. Porque esta noite vamos fazer a noite lentamente (Alejandra Pizarnik?), por mais que outros teimem não há outra forma que não seja lendo, que é gerúndio em arrebatar o mundo, em condensar a noite muito depressa.
por Mario Merlino
tradutor espanhol de António Lobo Antunes
07.06.2002
citado de El Mundo
[traduzido do espanhol por José Alexandre Ramos]
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