Sara Belo Luís: Romance em aerogramas
Com o delicioso mau-feitio que se lhe conhece, António Lobo Antunes dirá porventura que as cartas recolhidas em D'este viver aqui neste papel descripto não terão grande importância. Serão - como as crónicas - material «menor», quando comparadas com os romances, género no qual ele tem vindo a trabalhar ardilosamente. O autor que me desculpe, mas (se de facto assim for) não tem razão. Porque estas cartas de amor - como todas as cartas de amor que da vero o são - nunca se reduzirão a formas mais ou menos rebuscadas de dizer o amor.
As cartas que, de 1971 a 1973, António Lobo Antunes escreveu de Angola à sua primeira mulher são muitas coisas mais para além dos diminutivos carinhosos (os quais ele, aliás, também usa) e das declarações de amor incondicional. São cartas de um oficial que preferiu a guerra ao exílio parisiense. São cartas de um médico branco que dá assistência a uma população negra. São cartas de um homem de 28 anos que vive longe da mulher que ama. São cartas de um pai que não está presente no nascimento da sua primeira filha. São cartas de um filho que confessa que se sente desconfortável com o registo das missivas da mãe. São cartas de um escritor que acredita no seu valor e que não desiste de o querer ser. São cartas de leitor que devora romances para saber como é que os outros o estão a fazer. São cartas de um homem solitário no meio de uma terra que não lhe pertence.
São cartas, aqui se escreveu. A classificação do género epistolar será, porém, demasiado redutora para falar deste livro. Porque nele se mantém o fio condutor de uma narrativa romanesca. Apesar de existirem algumas lacunas (umas voluntárias e atribuíveis ao autor; outras, atribuíveis à censura militar que fez «desaparecer» algumas das cartas), D'este viver aqui neste papel descripto conduz o leitor num romance com um enredo, muitos episódios, meia dúzia de personagens e até algum suspense. O que é senão isso as conversas acerca da casa, das garrafas de bebidas alcoólicas e do dinheiro necessário para comprar um Fiat? O que é senão isso o dilema do remetente no toca à vinda de férias a Lisboa («devo morrer antes disso»)? O que é senão isso a ponderação do casal se todos (pai, mãe e filha mais velha) se deverão juntar em Angola?
Da guerra propriamente dita tem-se, a partir D'este viver aqui neste papel descripto, uma perspectiva loboantuniana. Apesar de não esconder as suas discordâncias ideológicas (e, neste campo, são inesquecíveis os manuais de alfabetização do MPLA), Lobo Antunes não se demora longamente em considerações de carácter político. Nem tal seria de esperar uma vez que se sabia que algumas cartas eram lidas: «Percebes o que eu quero dizer, não percebes?». A guerra - e, sobretudo, o absurdo da guerra - revela-se muitas vezes pela descrição (sucinta) das acções militares, do seu trabalho como médico e, sobretudo, pelo seu quotidiano aparentemente banal. Como seria natural, Lobo Antunes não se estende nos pormenores violentos das amputações, da cólera, das minas e das saídas para o mato. Tudo isso - no qual depois o escritor se baseou para escrever Os Cus de Judas - fica dito em poucas linhas para proteger a destinatária das cartas de preocupações inúteis.
O que, do ponto de vista literário, impressiona no romance D'este viver aqui neste papel descripto é a elegância de uma prosa escrita ao correr da pena no espaço reduzido dos aerogramas editados pelo Movimento Nacional Feminino e transportados gratuitamente pela TAP para a Metrópole. Maria José e Joana Lobo Antunes, as filhas de António Lobo Antunes e responsáveis pela organização do volume, dizem no prefácio que apenas corrigiram as gralhas e actualizaram a ortografia. Aquelas cartas estão como se fossem massacradas como agora sabemos que são massacrados os romances de António Lobo Antunes. Escritos e reescritos, lidos e relidos, riscados e emendados numa obsessão como um ostinato rigore que o autor não esconde. O que se estranha é que nenhuma daquelas cartas parece possuir uma hesitação sobre uma só palavra, uma frase rasurada ou sequer castigada. Ao autor, toda aquela torrente como que lhe é - usemos o adjectivo, correndo os imensos riscos que ele contém - como que instintiva.
Lobo Antunes expõe-se nestas missivas que ele nunca pensou que, algum dia, pudessem vir a ser lidas por mais do que uma pessoa. É o escritor que vacila perante o seu próprio talento (umas vezes) e o escritor que ousa achar-se genial (outras vezes). É o marido que está seguro de que é amado (umas vezes) e o marido que, à distância, tem dúvidas sobre a correspondência do seu amor (outras vezes). É por esta razão que D'este viver aqui neste papel descripto contém, mais do que tudo, um homem lá dentro. Um homem que no Portugal dos '70 não tem vergonha de chamar «pratinho de arroz doce» à sua mulher. Um homem sem pachorra para ler as Matchs que as suas tias zelosamente lhe enviam. E um homem muito mais frágil do que aquele que se vê nas entrevistas a fazer afirmações seguríssimas. Que, diga-se em abono da verdade, apenas desconcertam os mais desprevenidos.
por Sara Belo Luís
citado do Jornal de Letras
Novembro 2005
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