Matilde Ferreira Neves: Comentário a O Manual dos Inquisidores
«(...) os operários da fábrica que discursavam na rua a tratarem-nos por camaradas, a prometerem-nos casas de graça, a afirmarem que éramos livres e eu pensei
- Livres de quê?
já que a miséria permanecia a mesma só que com mais gritaria, mais bêbedos e mais desordem por não haver polícia» - Eis o retrato do pós de 25 de Abril que Lobo Antunes nos desenha em traços de quase caricatura no seu livro O Manual dos Inquisidores.
Uma obra que nos fala acerca do fascismo vigente antes e mesmo depois do 25 de Abril cuja narração é feita por personagens que se sucedem e alternam, que se revelam ao serem inquiridas por um narrador incógnito (trata-se, no fundo, de um romance eleborado pelas próprias personagens). O autor trabalha este romance no sentido de torná-lo, de algum modo, intemporal, constituindo uma amálgama do ontem e do hoje, apresentando-nos um elenco de tipos sociais que ainda persiste nos nossos dias, na tentativa de mostrar-nos que, se calhar, a sociedade não terá evoluído tanto como as pessoas o pretendem.
Temporalmente situado entre os anos 60 e 70, o Manual dos Inquisidores relata-nos as relações de poder de um ministro de Salazar, à volta do qual girará a própria narração do livro. Ministro que sendo cruel, é também capaz de amar, que sendo duro, é também carente, que abandonado e traído pela esposa, tentará reencontrá-la em outras mulheres, ora de forma agressiva e máscula («- Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão.»), ora de forma terna («(- Isabel
o meu pai em segredo, de lábios contra o chão, de ventre contra o chão
- Isabel
o meu pai quase terno
- Isabel)»). - Pinta-se, no decorrer da obra, o retrato de um homem prepotente e iludido pelo próprio poder, confrontado, no limite, com a solidão e com os seus fantasmas pessoais, que acabará derrotado pela idade e pela senilidade a ela inerente, vencido por uma obssessão extrema contra os comunistas, que o seu filho saberá descrever: «o meu pai que um ano depois da revolução teimava em esperar os comunistas (...)
- Já não há nada que me consigam tirar».-Um ministro despojado do amor e do poder, que se transformará numa sombra apenas, exilado numa clínica onde virá a perecer.
O Manual dos Inquisidores é um livro que reflecte o poder e os seus abusos na época salazarista(«aquilo que um protegido do professor Salazar afirma, por mais estranho que seja, ou é verdade ou os jornais vão garantir amanhã que é verdade o que equivale ao mesmo, e se a gente os contraria dá com os costados na polícia, de farol na cara e um chefe de brigada a convencer-nos com estalos evangelizadores, de que lado se acham o interesse do país, a virtude e a razão.»); no qual a gente pobre, conformada, apesar da miséria, não sentia pena nem raiva, nem nada, a não ser algum conforto por ainda persistir.
Uma viagem alucinante, ao real que nos transtorna e que, por vezes, nos leva ao riso: «e após a morte do meu pobre ofereceram-me um pobre mais novo que durasse mais tempo, saudável, ainda sem tosse, baptizado e com as vacinas em dia, aconselhado pelo senhor prior por não ter vícios nem ser capaz de me faltar ao respeito, que tive de mandar embora no Natal seguinte e de me queixar da sua falta de educação nas noelistas porque caí na asneira de lhe dar dez escudos e ao recomendar-lhe
- Agora veja lá não gaste isso tudo em aguardente
respondeu-me malcriadíssimo a virar e a revirar a moeda
- Claro que não menina claro que não fique descansada que vou direitinho ao stand e compro um Alfa Romeo»).
Relações de poder frustradas, relações amorosas falhadas, que deixam entrever as carências mais diversas («e no entanto eu gostava de si pai, gostava de si, não fui capaz de dizer-lhe mas gostava de si», «o meu pai que não me recordo de conversar comigo, me dar um beijo, me pegar ao colo»).
Um romance real e humano que, apesar de tudo, termina com o ministro esperançoso, cuja frase inacabada que fecha o livro nos relembra, talvez, que fica sempre algo por dizer...
- Livres de quê?
já que a miséria permanecia a mesma só que com mais gritaria, mais bêbedos e mais desordem por não haver polícia» - Eis o retrato do pós de 25 de Abril que Lobo Antunes nos desenha em traços de quase caricatura no seu livro O Manual dos Inquisidores.
Uma obra que nos fala acerca do fascismo vigente antes e mesmo depois do 25 de Abril cuja narração é feita por personagens que se sucedem e alternam, que se revelam ao serem inquiridas por um narrador incógnito (trata-se, no fundo, de um romance eleborado pelas próprias personagens). O autor trabalha este romance no sentido de torná-lo, de algum modo, intemporal, constituindo uma amálgama do ontem e do hoje, apresentando-nos um elenco de tipos sociais que ainda persiste nos nossos dias, na tentativa de mostrar-nos que, se calhar, a sociedade não terá evoluído tanto como as pessoas o pretendem.
Temporalmente situado entre os anos 60 e 70, o Manual dos Inquisidores relata-nos as relações de poder de um ministro de Salazar, à volta do qual girará a própria narração do livro. Ministro que sendo cruel, é também capaz de amar, que sendo duro, é também carente, que abandonado e traído pela esposa, tentará reencontrá-la em outras mulheres, ora de forma agressiva e máscula («- Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão.»), ora de forma terna («(- Isabel
o meu pai em segredo, de lábios contra o chão, de ventre contra o chão
- Isabel
o meu pai quase terno
- Isabel)»). - Pinta-se, no decorrer da obra, o retrato de um homem prepotente e iludido pelo próprio poder, confrontado, no limite, com a solidão e com os seus fantasmas pessoais, que acabará derrotado pela idade e pela senilidade a ela inerente, vencido por uma obssessão extrema contra os comunistas, que o seu filho saberá descrever: «o meu pai que um ano depois da revolução teimava em esperar os comunistas (...)
- Já não há nada que me consigam tirar».-Um ministro despojado do amor e do poder, que se transformará numa sombra apenas, exilado numa clínica onde virá a perecer.
O Manual dos Inquisidores é um livro que reflecte o poder e os seus abusos na época salazarista(«aquilo que um protegido do professor Salazar afirma, por mais estranho que seja, ou é verdade ou os jornais vão garantir amanhã que é verdade o que equivale ao mesmo, e se a gente os contraria dá com os costados na polícia, de farol na cara e um chefe de brigada a convencer-nos com estalos evangelizadores, de que lado se acham o interesse do país, a virtude e a razão.»); no qual a gente pobre, conformada, apesar da miséria, não sentia pena nem raiva, nem nada, a não ser algum conforto por ainda persistir.
Uma viagem alucinante, ao real que nos transtorna e que, por vezes, nos leva ao riso: «e após a morte do meu pobre ofereceram-me um pobre mais novo que durasse mais tempo, saudável, ainda sem tosse, baptizado e com as vacinas em dia, aconselhado pelo senhor prior por não ter vícios nem ser capaz de me faltar ao respeito, que tive de mandar embora no Natal seguinte e de me queixar da sua falta de educação nas noelistas porque caí na asneira de lhe dar dez escudos e ao recomendar-lhe
- Agora veja lá não gaste isso tudo em aguardente
respondeu-me malcriadíssimo a virar e a revirar a moeda
- Claro que não menina claro que não fique descansada que vou direitinho ao stand e compro um Alfa Romeo»).
Relações de poder frustradas, relações amorosas falhadas, que deixam entrever as carências mais diversas («e no entanto eu gostava de si pai, gostava de si, não fui capaz de dizer-lhe mas gostava de si», «o meu pai que não me recordo de conversar comigo, me dar um beijo, me pegar ao colo»).
Um romance real e humano que, apesar de tudo, termina com o ministro esperançoso, cuja frase inacabada que fecha o livro nos relembra, talvez, que fica sempre algo por dizer...
por Matilde Ferreira Neves
citado daqui
[não datado]
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