Visão: Grande Entrevista, A vida por detrás das crónicas

Visão
Entrevista de Ana Margarida de Carvalho
19 de Dezembro de 2013


O escritor recebeu a VISÃO na sua casa, espelho da sua própria sedução

Trata-as em diminutivo, assim por cima do ombro, as crónicas, "uns contitos", fragmentos, "aguarelazitas", "esboços", "fantasias", "palavrinhas", "pequeninos nadas", "piscinas para crianças" com água pela cintura e onde nunca se perde o pé. E, no entanto, é nas suas crónicas que tantas vezes António Lobo Antunes se revela e expõe de uma forma tão íntima - a ele e a nós, nos nossos pequenos devires de insecto, sempre a formigar na mesquinhez dos dias. 

Mais velho de seis irmãos - gosta de se dizer "filho mais velho de dois filhos mais velhos" -, António Lobo Antunes lembra-se de quando eram pequenos: adoecia um, adoeciam todos. E o pai, "um pai muito pouco ternurento", médico anatomopatologista, ia até ao quarto dos seus rapazes, sentava-se numa das camas e lia-lhes poesia. Ou fazia com eles um jogo temível. Citava uma frase e eles tinham de acertar em quem a houvera escrito. Ou punha a tocar os primeiros acordes de uma sinfonia para os filhos lhe adivinharem a autoria. A VISÃO propôs a um dos escritores maiores da literatura mundial o mesmo jogo, um pouco perverso. Lançar-lhe algumas das frases que ele escreveu nas crónicas quinzenais desta revista (coligidas em Quinto Livro de Crónicas) e decifrar-lhe sentidos ocultos, escavar-lhe as profundezas e outros canais subterrâneos. "Isto é muito difícil, porque me faz perguntas e eu não tenho respostas, só ainda mais perguntas. E quando penso que tenho uma resposta, ela transforma-se numa pergunta dentro de mim... E a seguir a essa não resposta vem um vazio angustiado... Eu estou cheio de perguntas e cada vez tenho menos certezas. Penso que os livros vão ficar, mas o que passei nos últimos seis anos [com o cancro e a recidiva], fizeram-me questionar tudo e até estar-me nas tintas para que os livros fiquem ou não". "O que é que me interessa isso, se eu morro."

Devemos fazer tudo o mais simplesmente possível mas não mais simplesmente do que isso" - é um dos títulos que deu à crónica em que fala da pouca importância que lhes dá, quando as retira ao acaso da gaveta e as envia para a editora...
Foi Einstein que disse essa frase. E é tão verdadeira, não é? [Pausa.] Às vezes mostravam-lhe um conjunto de equações e ele dizia "é esta": "Porque é a mais simples e a mais bonita." As crónicas nasceram um bocado assim, há 20 anos, quando o Vicente Jorge Silva me convidou para um suplemento de domingo do Público. Aceitei com a condição de o Zé [Cardoso Pires] poder alternar comigo, pois andávamos ambos bastante aflitos de dinheiro. Pensei que deveriam ser assim uma coisa levezinha, divertida e não sei quê... Nunca pensei que tivessem tanto sucesso e que viessem sequer a ser traduzidas lá fora... Espanta-me, porque onde jogo a minha vida é nos livros... O problema para mim, depois de escrever uma crónica, é regressar ao ritmo do livro. 

"As crónicas são um galope diferente, que me seca a cadência do livro e me atrapalha o ritmo. O segredo de escrever é ser estrábico, ter um olho na bola e outro nos jogadores (...) descobri-me lagarto numa pedra, à coca, muito quietinho, rodando as pupilas para sítios diferentes, guloso da mosca de uma frase." 
Faço a crónica num dia. Mas, depois, já não consigo voltar a pegar no livro que estava a escrever. Tenho de voltar a despir-me de tudo...  

Nas crónicas, fala muito do seu passado, da sua infância, da guerra, da doença, dos avós. Mas, depois, também diz: "O passado é a coisa mais imprevisível do mundo, não pára de se transformar." 
A frase é do [George] Orwell, eu sempre canibalizei muita coisa. O meu pai tinha uma mania para nós, seis irmãos rapazes, horrorosa. Dizia: "Quem não sabe quem escreveu esta frase não sai no sábado." Ou então punha meia dúzia de compassos de uma sinfonia a tocar e ameaçava: "Quem não sabe quem compôs isto não sai no domingo." E a Memória de Elefante [primeiro livro, 1979] estava cheio desse jogo com o leitor. Se calhar era uma pequena vingança contra o meu pai. 

Mas, por outro lado, também refere: "Estou cheio de citações, que gaita. Pareço um cigano a mostrar o ouro falso dos anéis..."
A gente quer que as pessoas nos admirem por fazermos uma bela metáfora ou fazermos uma pirueta, mas o importante no livro é que ele seja eficaz. O que interessa andar a mostrar plumas, e penas e proezas? A mim o que me interessa é escrever. O que está à volta custa-me um bocado, a exposição pública, tudo o que rodeia os livros. A minha vida é muito retirada, não vou a lançamentos. E finalmente lá consegui que a editora se deixasse disso. Durante anos e anos, escrevia os livros e deitava-os fora no fim. Um amigo meu viu um maço de papéis, jogado a um canto, perguntou-me o que era. Era a Memória de Elefante. Levou-o a várias editoras que não o quiseram e o livro acabou por ser publicado em 1979. Mas foi tarde demais, porque, nessa altura, eu já tinha escrito dois. 

Porque é que deitava tudo fora?
Porque ainda não tinha encontrado a voz. Pensava "ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é isto...". Eu sou canhoto, escrevia com a mão esquerda. E quando tento desenhar com a direita sai diferente. E a Memória de Elefante já foi escrita com a mão direita. Mas as receitas do hospital continuava a escrevê-las com a esquerda. Os gestos mais finos, de desenhar ou pregar um botão também os fazia com a esquerda. Não tenho talento para desenhar, é evidente, mas o meu pai tinha e obrigava-nos a fazer cópias de quadros famosos, como nos obrigava a ouvir música. Nos primeiros anos de casados, os meus pais tiveram logo quatro filhos e, então, quando um estava doente, adoeciam todos. Ele vinha com um livro, sentava-se numa das camas e começava a ler para nós, sobretudo poesia. Aos 19 anos, eu só escrevia poesia, queria ser poeta. Então descobri que não tinha qualquer jeito e fiquei desesperado com aquilo... Fazia umas tentativas muito canhestras e a minha poesia era, de facto, muito má... Havia pouco dinheiro lá em casa. O meu pai era médico, só estava no hospital e não ganhava muito. Ia uma vez por semana ao consultório, mas muitas vezes não levava nada aos doentes, trazia-os para casa, para jantarem connosco. O mestre dele, o Egas Moniz, dizia que nunca se devia levar dinheiro a artistas - e de repente todos eram artistas, até os bandarilheiros [risos]. De maneira que foi assim que conheci uma série de gente interessante. Era um homem que não se dava com quase ninguém, um homem muito fechado, mas um homem de paixões, até ao fim: a leitura e a pintura, a música... Fui fazer a primeira comunhão a Pádua por causa de uma promessa, por eu não ter morrido de meningite, em bebé... 

Nas crónicas, fala de doenças, não só do cancro mas até da eclampsia da sua mãe, quando nasceu inanimado: "Depois de me tirarem a ferros quem ia indo desta para melhor era eu, porque toda a gente, ocupada da moribunda, se esqueceu de mim." Tinha um avô que não se esquecia de si...
O meu avô, que também se chamava António, tinha uma grande devoção a Santo António, levou-me a Pádua fazer a primeira comunhão. Enquanto o meu pai só me levava a museus, museus, museus.... Naquela altura, os museus tinham escarradores cromados a cada dez telas, e do que eu gostava era dos escarradores. 

Aliás, diz: "O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e envergonho-me disso."
Sim, o meu pai com discursos sem fim sobre a perspectiva em Tintoretto para uma criança de sete anos e eu fascinado com os escarradores [risos]... Pouco antes de ele morrer, um dos meus irmãos, o Miguel, perguntou-lhe: "O que gostava de deixar aos seus filhos?" E ele respondeu: "O amor das coisas belas." Só já muito perto da morte lhe fiz a pergunta mais íntima que existe: se ele acreditava em Deus. E ele, anatomopatologista, naquele gabinete cheio de cérebros, ficou calado durante um bocado e depois, sem olhar para mim, respondeu: "o nada não existe na biologia" e, depois, não disse mais nada. Portanto, as nossas conversas eram assim... 

O seu pai não gostava de "pieguices". Entre os irmãos "não há efusões, não há gestos". Era assim em sua casa?
Não havia confidências, nem manifestações exteriores de ternura... Com o meu irmão João, que é, talvez, a pessoa que eu conheço melhor, não partilhamos confidências e, no entanto, sabemos tudo um do outro, sem falar. Não se falava muito em minha casa, de facto. Eu não falava muito, o meu pai e a minha mãe não falavam muito. Não havia grandes expansões físicas de ternura. Há alturas em que penso que tivemos a sorte de não termos sido amados... 

Porque é que diz sorte?
Porque, se fosse ao contrário, se calhar não escrevia, não é? A gente escreve para gostarem de nós. Quando o Mozart, aos 5 anos, tocou para a corte francesa, ele foi a correr sentar-se ao colo da Maria Antonieta e pediu-lhe "aimez moi!". 

Mas, por outro lado, tinha com eles esta estranha cumplicidade de fazerem chichi juntos: "Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade."
Nós temos a imensa vantagem de poder fazer chichi de pé. Era engraçado, na tropa: quando um tinha vontade, íamos todos [risos]. É muito engraçado isso. Lembrei-me agora de repente, do [Ernesto] Sabato, no livro Sobre Heróis e Túmulos, que acaba com duas personagens que saem da camioneta, e fazem chichi à beira da estrada, enquanto observam como é bonito Buenos Aires ao longe. Não sei como é com os meus irmãos, nunca falámos disso, mas eu carrego a grande dor de não ter tido uma irmã. É talvez o maior desgosto da minha vida. 

Porquê? Gostava de conhecer a mulher numa outra perspectiva?
Um autor americano dizia "o que fizeste da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer?". Esta frase tocou-me sempre tanto... E a sensação de que se calhar tive uma irmã gémea que abandonei ao nascer, percebe o que eu quero dizer? 

Não muito bem...
É evidente que não tive, mas isso foi sempre, dentro de mim, uma nostalgia  grande e uma dor. Poder gostar de uma mulher como de uma irmã. 

Mas nunca lhe aconteceu na amizade?
Nunca consegui a pureza que eu imaginava que teria essa relação. Onde o sexo e os instintos estavam abolidos. Adorava ter tido uma irmã e hei-de morrer com essa pena. Nem imagina o que essa frase me tem feito pensar... "O que fizeste da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer?"

Se calhar é porque existe um lado feminino cromossomático (XY) em todos os homens, todos nasceram de uma mulher...  
Eu gosto da parte masculina das mulheres, mas não gosto da parte feminina dos homens. Como mulheres, os homens deixam muito a desejar... 

Mas tanto nos livros como nas crónicas coloca-se tantas vezes dentro de uma voz feminina...
Pois é, e cada vez mais. Não sei porquê... Gosto dos homens que são tão homens que não têm medo de serem mulheres. 

As suas mulheres, tão melancólicas e solitárias, parecem saídas dos quadros do Hopper, a olharem o vazio...
Não as consigo ver. Para mim são vozes. São aquelas vozes que vêm e entendo-me bem com elas. As crónicas são muito apanhadas aqui. Este é um bairro pobre [Conde Redondo], está cheio de viúvas, em quartos alugados... As pessoas são tristes, aqui. Aliás, o bairro é feio, triste e pobre. Não sei, talvez se vivesse noutro sítio, as crónicas sairiam diferentes. Mas isso tem-se acentuado nos últimos tempos, desde que vivo nesta casa [uma antiga casa de chá remodelada]. Eu não me ponho grandes perguntas. Limito-me a escrever. 

Aliás, diz que escreve onde calha...
O sítio onde escrevo é-me indiferente, não tenho rituais, nem maço ninguém... Desde que não falem comigo. Escrevo devagar, mas também não faço mais nada. Gosto de desenhar as letras, o acto de escrita tem uma componente infantil que me agrada. Escrever é fazer redacções. E as pessoas a darem importância às redacções... Por isso, fico sempre surpreendido quando dizem que os meus livros são complicados. Para mim são tão óbvios, é tão claro aquilo, que parece que tinha mesmo de ser assim. Não me interessa nada contar histórias. 

O que o interessa é "experimentar, penosamente, alcançar com o dedo as areias do fundo, quero lá saber de personagens e enredos: servem-me, quando muito, de isco, para atrair o leitor, e sobretudo para me atrair a mim mesmo"? 
Sim. E aquelas vozes. Normalmente, sento-me e tenho de ficar uma hora à espera, a esvaziar, a esvaziar... Depois vem uma palavra... Começar um capítulo é sempre difícil, o arranque é tão, tão, difícil... E até aquilo que está dentro de nós começar a sair e a andar sozinho.... E só se faz aquilo que o livro quer. Nós vamos atrás do livro, não vale a pena fazer planos, ele foge-nos para todos os lados, não o orientamos, não o dirigimos, vai-se atrás dele. E ele é que diz que acabou. 

Como é que lhe diz que acabou?
Um livro acaba quando a gente sente que o livro está farto de nós, já não aguenta mais correções. Como quando nos querem beijar e já não nos apetece mais, e os lábios parecem bifes, e se nos tocam, a gente deita-se na pontinha da cama, na esperança de que não nos toquem mais... Quando aquilo de que antes gostávamos nos irrita, a maneira de cruzar a perna, ou de atender o telefone, ou os tiques verbais, que até tinham encanto... E então a gente sente que o livro está farto. Júlio Pomar citava  uma frase do Marcel Duchamp: "Um quadro nunca está acabado, está definitivamente inacabado." Num livro é sempre possível continuar, há sempre um "que" ou um "mas"... O Zé [Cardoso Pires] tinha uma relação muito angustiada com a escrita. Uma vez, virou-se para mim, com uns olhos esquisitos: "Os meus livros não são assim tão maus, pois não?" E estava a ser profundamente sincero. E ele, que era um homem duro, parecia um miúdo. 

Tinham uma grande cumplicidade?
Eu compreendo a infidelidade no amor, mas não a compreendo na amizade. E o Zé tinha uma enorme fidelidade na amizade. Com 15 anos comprei o livro O Anjo Ancorado e mostrei-o ao meu pai. E ele: "Um homem chamado Pires não pode ser um bom escritor." Mais tarde, numa entrevista, falei nisso. Conheci-o no aeroporto e ele disse: "Eu sei que sendo Pires não posso ser bom escritor mas tu és e gosto muito de ti." E foi assim, ficámos amigos de infância. É assim: instantâneo e absoluto como o amor. 

E porque é que entende a infidelidade no amor?
No amor, o ciúme é normal, e até posso aceitar o sentimento de posse. Na amizade, isso não existe, os nossos amigos têm outros amigos, e nós aceitamos isso. Mas talvez não sejam sentimentos tão diferentes... Para mim, a amizade é completamente assexuada, não sou capaz de sexualizar uma amizade, nunca fui, mas no amor às vezes também não. Porque o amor é tanto, que a gente fica sufocada de paixão e nem pensa em sexo, ficamos a olhar apenas, só o privilégio de poder estar a olhar... e existe aquela sensação de que se tocar vou estragar, porque posso fazer ali uma nódoa, um amolgão, qualquer coisa... Ultimamente, acho que é uma honra tão grande estar vivo... E um acaso...  

Diz que deixou muita gente para trás, para se dedicar à escrita...
Não percebo. Explique-me melhor essa ideia... 

A ideia é sua.
Então, mais uma razão para me explicar melhor. [Risos.]

Pôs sempre a escrita primeiro?
[Pausa.] Sim, pus em primeiro lugar a escrita. Para ser honesto, é verdade. Pus à frente das miúdas, até. Lembro-me de uma delas me dizer "O pai quando está a escrever é um chato, porque não faz mais nada, e quando não está a escrever ainda é pior porque está sempre a olhar para o tecto." Quando estou com um livro estou sempre agarrado a ele e sobra pouco para os outros. 

O seu livro abre com uma crónica chamada Zezinha, em que fala da mágoa de estar longe, na guerra, em Angola, quando a sua filha nasceu...
Foi das coisas que mais me custou, na ditadura. Até isso me roubaram, já viu? A miúda nasceu e soube três dias depois, por um telegrama cifrado R... A... P... A... e pensava que a seguir vinha um Z, para lhe chamar António, porque achava que ia morrer lá. Estava tão furioso, que fui para o arame farpado chorar como uma Madalena... É um milagre tão grande fazer um filho, depois ficam uns adultos chatos, mas ali são só nossos, ou talvez não sejam nossos, mas não são de mais ninguém. Mandavam-me retratos, mas os bebés estão sempre a mudar e quando, meses depois, a vi, disse "mas esta não é a minha filha" e aí foi a mãe que se fartou de chorar... 

Numa outra crónica conta como a sua filha o desarmou com uma palavra inventada: "Aborrecente".
Quis fazer com ela o que o meu pai fez comigo. Levei-a a um museu e ela sempre muito caladinha. No final, perguntei-lhe se gostava dos quadros e ela respondeu-me "achei um bocado aborrecente" [risos]. E se calhar tinha razão, nunca mais a levei a um museu, é aborrecente.  

Escreveu: "Ainda não aprenderam a ler-me. Tentam abrir a porta com a chave que trazem no bolso, pequenina, estreita. E surpreende-me que não vejam que basta empurrar com um dedo." Não se sente bem lido?
Os bons escritores ensinam-nos a lê-los. As primeiras vezes que li Conrad achava aquilo muito complicado e percebia mal. O problema não era dele, era meu. Que estava a ler aquilo com a minha chave, com os meus valores, com as minhas noções... E não estava a deixá-lo levar-me para onde eu tinha de ser levado... Ontem, estava a ler a história da literatura inglesa a partir do Dickens, e os ingleses são tão diferentes dos portugueses a falarem de literatura, tão mais profundos, com uma aparente simplicidade nos termos, na forma como expõem... Nós, portugueses, parece que arranjámos uma metalinguagem... Quem somos nós para julgar?

Mas já citou Joyce, dizendo que gostava de "dar trabalho aos críticos por 500 anos"...
Fico sempre insatisfeito - até que ponto é possível falar sobre um livro? Posso dizer gostei, mas nós confundimos ideias com paixões: há livros que sei que são bons e de que não gosto. Não gosto do Musil e do Thomas Mann, mas sei que são bons. Há outros que são maus e de que gosto... 

É uma questão de charme?
Um livro de que eu goste tem de ter charme e o Musil não tem charme nenhum... Ler um livro bom é uma alegria tão grande. Por isso, eu não entendo a inveja e a rivalidade entre escritores, porque isto não é nenhum desporto de competição. Não faz sentido a inveja em arte.  

Sente que ela existe?
Estava a lembrar-me do Nabokov, que era um homem com muito talento... Não é um escritor de que eu goste muito mas tenho de reconhecer que é bom, embora tivesse ciúmes de toda a gente - dizia mal do Conrad, dizia mal do Hemingway, dizia mal do Faulkner. Só dizia bem de escritores que ele achava maus e muito mais pequenos. Não entendo, nunca tive ciúmes nem inveja. Para mim é uma alegria encontrar-me com um livro bom.  

Mas há livros que ficam e outros que se evaporam?
E depois? O Bach não esteve 200 anos esquecido? O Proust morre em 1922 e só é recuperado para aí nos anos 60...

E o Balzac que era desprezado...
O Balzac era espantoso, não era? E tinha aquela bengala com uma bola de vidro com os caracóis dos cabelos das admiradoras, sabia?

Não. 
O que me importa é o que eles deixam. Vou à feira do livro e vejo os escritores sentados com os livros à frente e fico espantado, é extraordinário, repare, eles escrevem! Quando era miúdo, vinha do liceu Camões e passava a pé por uma cervejaria, onde almoçavam o David Mourão-Ferreira e a Natália Correia e uma data de escritores... E eu ficava cá fora, a olhá-los, a vê-los comer - porque eles escreviam... 

Mas também manifesta o seu desapreço: "Leio livros maus uns atrás dos outros: a quantidade de tralha que se imprime deixa-me de boca aberta. O que pensarão os autores destas coisas, das bodegas que fizeram? Se calhar andam felizes..."
Pois, vemos muita porcaria, é tremendo... Ainda ontem, a minha editora [Maria da Piedade Ferreira] esteve a mostrar-me os tops. Não há lá um único livro de literatura. São só livros de auto-ajuda, biografias muito mal escritas. Os livros bons não se vendem, porque será isto?  

Mas há romances portugueses que o Lobo Antunes não considera muito e que vendem que se fartam... 
O que é um romance, não sei muito bem... O Guerra e Paz é um romance? O Tolstoi resolvia a coisa dizendo que um livro é aquilo que um escritor põe por baixo do título, ou como fez o Gogol que escreveu "poema" por baixo do Almas Mortas. Até que ponto será legítimo haver distinção por géneros, conto, romance, novela, eu digo sempre livros...

Parece-me que lhe agrada que haja uma distinção como fazem na grande casa alemã onde edita... Entre literatura e best-seller...
Sim, de um lado põem muitas coisas nórdicas, policiais e aquele género de leitura de aeroporto americano. Mudei-me para lá, porque havia um editor com quem me agradava trabalhar: é mais difícil encontrar um bom editor do que um bom escritor. Embora também não haja grandes editores sem grandes escritores. Mas vejo, sim, a quantidade de biografias mal escritas, o que é que quer? As pessoas não sabem gramática... 

O que torna um livro bem escrito é apenas a sua consonância com a gramática?
Claro que não. Estava a tentar responder de uma forma rápida para as pessoas. O que é que o leitor encontrará lá? Eu não consigo compreender... 

Talvez a facilidade os seduza ou algum embalo da previsibilidade...
Pois, não sei. Acho o Hermann Hesse um escritor para adolescentes; a gente, depois, cresce e começa a gostar de outras coisas. Noutro dia, puxei-o da estante e li esta frase "É estranho caminhar no nevoeiro, as árvores não se conhecem umas às outras". Isto é muito bom, fiquei cheio de inveja, eu que já tinha arrumado o Hesse em "escritores para adolescentes"... Ali, no corredor, passei pelo Dickens, uma parte em que um homem vai visitar a mãe num hospital e pergunta-lhe: "Tens dores, querida mãezinha?", e ela diz: "Tenho a impressão de que há uma dor aqui no quarto mas não sei se sou eu que a tenho." Isto é extraordinário, porque quando se está doente é exatamente isto. Bom, eu não sabia se ia viver ou morrer, mas a sensação é essa: ele consegue exprimir exatamente o que se sente num quarto de hospital. Onde se passa a noite a olhar pela janela à espera da manhã, como se ela nos viesse salvar. Mas a manhã nunca nos salva de nada... Se a gente trabalha muito, há milagres assim...

Por outro lado, afirma que sem talento nada feito...
Tem de se trabalhar muito, mas de onde vem aquilo que se escreve? Vem de nós? Até que ponto é legítimo a gente assinar com o nome? De que parte nossa ou não nossa vem? Os momentos bons parecem-me a mim que me são ditados, não há motivo para ser vaidoso, e julgo não ter vaidade. Julgo saber também o que os meus livros valem, mas não tenho vaidade nenhuma porque, sinceramente, não acho que seja o dono deles. Uma vez, um tipo disse ao Bach: "Ah, como eu gostava de ter composto essa tocata" e ele respondeu "se você tivesse trabalhado tanto como eu..." Não há talentos, há bois, pessoas que marram e marram e marram...

Mas não tem dúvidas de que as suas obras são das que ficam...
Não me serve de nada... porque eu morro. Quando estava doente, e não sabia se ia viver ou morrer, estava-me bem nas tintas para os livros, e deram-me o Prémio Camões.  Eu queria lá saber, acabavam-me de dizer que tinha um cancro. Aliás, o que é um prémio literário? Um prémio não honra um escritor, os escritores é que honram os prémios. Devíamos dar os parabéns ao Nobel por alguns grandes escritores o terem ganho..

Há pouco disse não sentir vaidade mas parece ter noção do fascínio que provoca nas mulheres, por exemplo: "A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, Che Guevara ou eu, e eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo."
Às vezes faz-me impressão ver, nos restaurantes, casais que não trocam uma palavra, ou vão os dois no carro a olhar em frente. Nós sonhamos sempre com um amor absoluto e sem fim. Eu vi isso nos meus avós. As minhas tias, já adultas, tinham de andar com os pés a bater no chão antes de entrarem numa divisão onde eles estavam para não os surpreenderem aos beijos e aos abraços. E não me lembro de ver os meus pais tocarem-se. O Freud defendia que numa relação sexual havia sempre quatro pessoas, às vezes até pode haver mais. Chega-se a uma altura em que a gente compreende que, às vezes, é mais importante estar de mão dada no sofá do que a fazer amor. E que isso pode ser mais íntimo, mais profundo e dar um prazer de uma intensidade muito grande. Pudesse eu andar de mão dada com o meu avô... [risos]. 

O tal avô de que falava no início desta entrevista...
O meu avô paterno. Era monárquico, fascista, salazarista e era a pessoa mais tolerante, mais aberta e extraordinária. Foi o homem de quem eu mais gostei. Morreu quando eu tinha 18 anos e tenho muitas saudades dele. Era tropa de cavalaria, vivia apavorado que eu fosse maricas, porque escrevia coisas, o que era, para ele, uma coisa inconcebível. Chamava-se António Lobo Antunes, tal como eu, o meu nome todo. O avô dele passava fome na Póvoa do Lanhoso e o pai meteu-o, com 12 anos, num barco para o Brasil, num veleiro, por isso, veja as minhas origens: o primeiro Lobo Antunes, cujo pai era o tal Antunes que foi no veleiro e a mãe era uma senhora do Brasil que se chamava Lobo, que era evidentemente judia... O meu avô devia ser duro, porque era muito corajoso, muito forte fisicamente, mas nunca o vi ser violento. Não era muito inteligente, mas tinha uma grande bondade e generosidade. Dava-me beijos na rua e eu tinha imensa vergonha. Imagine a estupidez, um miúdo de 13 anos a ser beijado pelo avô, com medo de julgarem que éramos dois maricas. Fazia-me festas. Chegavam as férias e ia para casa dele, e, à noite, na cama, ia-me dar um beijo e levava-me bolachas e água... Mas, ao mesmo tempo, queria que aprendesse a disparar uma espingarda horrível e eu tinha um medo... tinha medo de tudo...  

Fala muitas vezes de já estar "a rapar o fundo ao tacho", de não conseguir escrever mais...
Eu sinto que tenho livros para fazer, às vezes penso que sou como uma vaca, ou égua, ou cabra, que ainda pode engravidar mais três ou quatro vezes. Gostava de continuar a escrever. Às vezes penso que talvez tenhamos nascido com certo número de livros cá dentro. Se eu não os escrever, a minha vida não tem sentido. 

Não pensa em fazer uma autobiografia, mas tem memórias tão marcantes e tão presentes na sua literatura... 
Em todos nós. Ortega y Gasset dizia que a vida adulta era a infância fermentada. A minha vida já está toda nos meus livros. Sobretudo nos últimos. Nos primeiros, tive de fazer aquela catarse, de me libertar da guerra e das coisas horríveis que vivi. E do sofrimento muito grande que sempre me acompanhou, para grande indignação da minha mãe que dizia "nasceste com tudo: és bonito, és inteligente, tens uma família que gosta de ti, não passas fome e nunca estás satisfeito..." Eu não sou grande espingarda na alegria, de facto. Nunca fui extrovertido nem alegre e sinto esta sede de amor e de ternura inextinguível... 

A proximidade da morte mudou-lhe a vida? 
O que passei nos últimos seis anos, fez-me estar nas tintas para que os livros fiquem ou não. Passei por coisas muito duras, diante da morte. Aquele encontro com o [George] Steiner foi maravilhoso, nunca nenhum homem me impressionou tanto como aquele: pequeno, aleijado, com o braço direito com metade do tamanho do esquerdo, e a mãe, que odiava a auto-piedade, obrigava-o a escrever com a mão direita... Nunca vi um homem tão culto, inteligente, luminoso... Disse-me: "Sabe porque é que eu não quero morrer? Porque depois não posso ler o jornal do dia seguinte." Quando ele sorria era extraordinário: tornava-se tão atraente. Ele é daquelas pessoas raras que, quando estão a falar connosco, parece que mais ninguém existe a não sermos nós e que nos fazem sentir únicos, está a ver?  

Sim.
É tão raro isso, ele estava a olhar para mim e nada mais existia a não ser nós dois. E eu a dizer bem do Monte dos Vendavais e ele "mas não acha aquilo um bocadinho histérico?" e, de repente, dei por mim a olhar para o Monte dos Vendavais com os olhos dele e a achar que, de facto, é um bocadinho histérico [risos]. Quando leio Nabokov parece que ele me está sempre a dizer "repara como eu sou inteligente, repara como eu sou inteligente"... E isso irrita-me, não quero sentir o autor. Pois, disse o Steiner, mas ele inventou uma coisa: as Lolitas, que agora há por todo o lado. É verdade, ele é que as inventou... Passei uma tarde maravilhosa, foi tão bom, um prazer intenso, ele tinha em casa o piano do Darwin, e cartas do Freud para o pai... Em Harvard, o gabinete dele ficava ao pé do de um grande físico, um homem de grande beleza, com um cachimbo, e que toda a gente tentava imitar, os gestos e tal. Uma vez, Steiner ouviu-o a dar uma descompostura a um outro físico: "Como é que você que é tão novo ainda fez tão pouco?" Como é que você que é tão novo ainda fez tão pouco... É extraordinário. 

Mas já afirmou que não acredita em bons romances antes dos 30 anos...
Porque é preciso ter vivido. Quem teve, como eu, uma infância isolada, em Benfica, que era um arrabalde, com pouca gente, onde todos se conheciam... A minha mãe sabia as horas pelas pessoas que passavam nos eléctricos, e dizia-se "ir a Lisboa"... Saí dali para o liceu. Do liceu para a faculdade. Da faculdade para a guerra. Não tinha vivido nada. Não havia raparigas, não tinha irmãs, era o filho mais velho de dois filhos mais velhos, não tinha primas, só nasceram muito depois. Não sabia o que era uma rapariga, tinha imensas fantasias, mas não sabia o que era. Os liceus não eram mistos, só na faculdade é que havia raparigas, mas era tímido demais para meter conversa e fui virgem até muito tarde. Tinha uma vida solitária. Foi só na guerra que me apercebi de que não era o centro do mundo. Era um como os outros, ali. E os rapazes portugueses eram extraordinários, vi-os na guerra, na doença, com uma dignidade... "Abraça-me que é o último abraço que me dás", já viu isto?... E como a morte é injusta e cruel o sofrimento... O condutor do rebenta-minas era sorteado, tinha mais chances de morrer, e vinham ter comigo, porque queriam fazer o testamento: tinham um fio, um anel e um relógio, quando tinham... Uma vez, numa emboscada, um rapaz sem pernas só dizia: "Quando o meu pai souber mata-se, quando o meu pai souber mata-se..." E foi aí que comecei a tornar-me pessoa crescida. Na faculdade, havia aquele movimento contra a ditadura, mas eu era cobarde e tinha medo. E então em África, os soldados só admiravam as pessoas quando eram duras e eu queria ganhar o seu respeito, porque me tinha comportado sempre como um cobarde: na faculdade tinha medo da polícia de choque, tinha medo da pide, tinha medo de tudo... Era um cobarde. E agora a coisa em que eu tenho mais orgulho é no amor dos meus soldados. Eu olho para eles e, de repente, eles têm outra vez 21 anos, quase todos do Norte, mas muito mais adultos do que eu, que, com 26, me achava um homem. Só então percebi porque fomos nós que andámos nas caravelas... Fazíamos uma guerra sem condições nenhumas, o stresse era constante, mas havia momentos bons, mesmo de alegria, foi lá que conheci pessoas extraordinárias, corajosas, generosas, boas. E eu que não sabia que as pessoas podiam ser tão boas. Se as minhas filhas estivessem aqui, começavam já a dizer em coro: "O pai tem a mania que toda a gente é boa"... [risos]. As pessoas sofrem tanto, e a vida é tão injusta, quase para toda a gente... e o que a gente sofre e ninguém sabe... 

Há muitas crónicas em que parece que fala com amor da amizade...
É engraçado, eu beijo os meus amigos, que não são muitos, mas beijamo-nos sempre. Mas nunca tive um amigo homossexual que me beijasse. Esses estendem-me sempre a mão. Nunca percebi porquê. O Cardoso Pires beijava-me, o Eugénio de Andrade nunca. E, no entanto, eu sei que ele gostava muito de mim. Nunca o fui ver, porque a doença o tinha atacado naquilo que ele mais prezava: a sua beleza. Tinha sido muito bonito, uns olhos verdes lindíssimos. E sei que ele esperava por mim, porque dizia à senhora que tomava conta dele "ponha o meu fatinho aí, porque se calhar o meu amigo vem ver-me", e eu nunca o fui ver... E ele comigo foi sempre de uma ternura e doçura. Quando mataram o Dias Coelho teve a coragem de publicar um poema. Tinha, em relação aos amigos, uma imensa elegância. Numa ocasião, saíra um livro do Jorge de Sena, de quem ele era muito amigo, que era o Dedicácias, em que Sena atacava, de uma forma, a meu ver, reles, homens que tinham muito mais talento do que ele, o Mário Cesariny, o [Vitorino] Nemésio... Cheguei lá a casa do Eugénio de Andrade e disse-lhe: "Já viu o que o seu amigo Jorge escreveu?" Ele ajoelhou-se e tirou o livro de baixo do sofá e explicou-me que o tinha escondido ali para que eu não pensasse mal do Jorge. Acho isso extraordinário de amor. Arranquei a página de um livro com uma dedicatória de um escritor italiano que diz: "Para o António com amorzade."  

Está ali na sua parede...
Achei tão bonita a frase que a emoldurei. A amizade é como o amor, a gente encontra uma pessoa e fica amigo de infância.  E o Zé [Cardoso Pires] faz-me muita falta. Ele dava-me o braço na rua, um homem seco e rugoso, com uma personalidade difícil, dava-me o braço na rua... imagine. Ele tinha gestos de uma infinita generosidade... Sempre que um pedinte o interpelava, ele, sempre com tão pouco dinheiro, parava e andava à procura nos bolsos... e dava. Uma vez, fez-me um telefonema tão bonito: "É para te dar os parabéns, porque ganhei um prémio." E depois tinha a mania do Nobel, e dizia "perdemos", porque ficava muito triste porque não me tinham dado o Nobel.  

Já não pode mais com a conversa do Nobel, pois não?
Quero lá saber, já me deram tanta coisa. Prémios que eu nem sabia que existiam. Noutro dia, telefonaram-me de Espanha, foi uma barraca, porque me disseram que tinha ganho o prémio Rufo e a minha resposta foi "Quanto?" - e ouvi imensos risos de pessoas, estava em alta voz, em plena conferência de imprensa. Era uma pipa de massa.  

Há bocado pareceu-me que fugiu à questão quando eu lhe perguntei, citando uma frase sua, se tinha noção do fascínio que exercia nas mulheres...
Aí voltamos ao Mozart. Se eu pudesse sentar-me ao colo da Maria Antonieta e pedir-lhe para ela gostar de mim...


fonte: Visão
edição 1085
19.12.2013

entrevista de Ana Margarida Carvalho
foto: Visão - Gonçalo Rosa da Silva

[entrevista cedida por cortesia da entrevistadora]

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