Ricardo Soares: sobre Não É Meia Noite Quem Quer
O título “Não é Meia Noite Quem Quer” não lhe surgiu quase perto do fim, como aconteceu com os anteriores: há que tempos andava com o verso de René Char na cabeça. Em Janeiro de 2011 António Lobo Antunes escreveu uma crónica na “Visão” a que chamou “Não é Meia Noite Quem Quer”: «Há anos que este verso de René Char me persegue. Pensei usá-lo como título para um livro, como coda para um capítulo, fazer variações em torno dele num texto qualquer. Não fiz nada, até agora, porque me anda na cabeça mas não me aparece na mão, e só consigo escrever com os dedos, os miolos não pegam na esferográfica. Por qualquer motivo obscuro o bico da caneta não o aprova. E, no entanto, volta não volta lembro-me dele. Por exemplo quando me cruzo com a mendiga estrangeira, alemã ou holandesa, não sei, a pedir esmola no semáforo aqui perto».
Poucos meses passados “Não É Meia Noite Quem Quer” deu-lhe, enfim, um romance. Que escreveu, belo, a ouvir uma voz de mulher que lhe ditava tudo. A infância, a morte, a guerra colonial, o cancro: vida e obra indistinguem-se – «este é espantosamente autobiográfico. Fico com a sensação de me estar a conhecer melhor». (1)
Para o autor, este é o seu melhor livro: «– É o meu livro que mais gosto. Um puro milagre, não sei explicar de onde é que veio, parecia água a correr, o livro a escrever-se sozinho dentro de mim» (2). Em 1980 aconteceu-lhe o mesmo, numa viagem de Aveiro para Lisboa, quando chegou tinha o livro “Explicação dos Pássaros” feito. Estava dentro de si, enchia-o todo, no seu sangue, nas suas veias. Bastava escrevê-lo para o papel: «– Pensei que este milagre não se iria repetir mais na minha vida, mas repetiu-se com este livro, a mesma sensação de que me estava a ser ditado e que a mão e a esferográfica não conseguiam a mesma velocidade do que a voz que o dizia». (3) Chorava enquanto o escrevia, não porque se comovesse, mas porque aquelas eram as frases exactas. Porque o seguinte, “Caminho como uma Casa em Chamas” (a sair em 2014) foi o tormento do costume, as falsas partidas, as emendas, os recuos, as hesitações… como dizia José Cardoso Pires, seu grande amigo, ocorre-lhe: «É preciso que a gente sofra para que o leitor tenha prazer». (4)
“Não É Meia Noite Quem Quer” prende-nos, sitia-nos, cerca-nos, naquele labirinto atmosférico e concêntrico, em que no meio está inevitavelmente a morte: «Morrer é quando há um espaço a mais na mesa, afastando as cadeiras para disfarçar». (5) Desenvolve-se em três dias: sexta, sábado e domingo. Uma mulher, sem nome, com 52 anos vai à casa da praia da família que vendera. Ela é voz predominante, uma mulher operada, não tem um peito, extraíram-no, ao peito e à axila e vem despedir-se da casa de praia. A despedir-se relembra-se do que passara até lá chegar: dos frenesins da infância ao suicídio do irmão mais velho, do irmão surdo-mudo ao dramático relacionamento dos pais – e do depois: mal casada, sem filhos, em relação frustrante e sem entusiasmo com colega mais velha, ilusões enterradas, tentações que lhe vão puxando à ideia imitar o irmão, atirar-se das arribas, afogando, de vez, a vida, por ali…
… E ficamos sitiados neste romance redondo, que se passa em três dias, com dez capítulos cada, e, a páginas tantas, já as nossas emoções foram sugadas pela ravina onde se despenham burros descarnados ou o irmão mais velho, traumatizado da guerra.
É uma família em estado de anonimato. Tudo o resto é nomeado no livro, até o rinoceronte de brincar (Ernesto), a pastelaria (Tebas), a vizinha do lado (Tininha), mas, de resto, são o pai, a mãe, irmão mais velho, o irmão surdo, e aquele eu da mulher, filha que perdeu um filho e um seio. Um irmão que foi à guerra e assistiu ao episódio pungente de uma mulher que andava com o bebé morto às costas, apodrecido há semanas. Este romance passa avassalador, enleante, por deslumbramentos e mistérios – que tanto podem estar num café com matraquilhos como num circo, num motociclista no poço da morte como numa acrobata em fato de banho – e tem fragmentos assim: «A Andrea, sem arame nem sapatilhas de bailarina, faltando-lhe uma alça na blusa, almoçava de uma panela com os outros artistas, era o mágico que, em vez de pombas, tirava batatas da cartola e as metia a cozer». (6)
Foca a presença dos ausentes: «Por que razão as pessoas nos abandonam e os brinquedos permanecem mãe?»; «há pessoas que demoram tanto tempo a deixar-nos, o corpo vai-se mas os olhos permanecem ali, iguais aos cachorros largados longe que regressam sempre, não zangados, humildes…». (7)
Também tem bicicletas. Uma velha, quadro com farol, buzina em vez de campainha e cesto de rede para pêssegos, levando sonhos, trazendo mágoas. E uma outra a abrir-se em espanto: «trinta e seis velocidades, a do meu irmão mais velho nenhuma, selim especial, quadro de liga carbónica, acanhamento de pergunta, desinteresse em conhecer, o homem muito mais novo
– Não pesa nem três quilos
O guiador cheio de botões, alavancas, patilhas». (8)
Ao longo da obra verte algumas criticas: «…não existem amanhãs que cantam, existem ontens fugidios e hojes estreitos…»; «…tenho a consciência tranquila, não sei o que isso significa mas acho a frase bonita, e além disso passam a vida a dizê-la, tenho a consciência tranquila, que curioso, não é, o mundo inteiro uma serenidade sem pecado…». (9)
Percebe-se desde a primeira linha: é o romance que conta história em poema. E acaba deste modo: «já não se dá pelas ondas, não se ouve a espuma, não se escuta o vento, a minha mãe a separar-se de si e a estender-se na direcção do mar, consoante me estendia, a fim de deitar-me, na direcção da cama, os lençois e a almofada a aproximarem-se e eu tão satisfeita, tão cansada, tão cheia de sono que, no momento em que me largou, não sei qual de nós as duas caiu». (10)
(1) – Proferido pelo autor no Festival Literário Escritaria, em Penafiel.
(2) – Ibidem.
(3) – Ibidem.
(4) – Ibidem.
(5) – António Lobo Antunes, in “Não é Meia Noite Quem Quer”.
(6) – Ibidem.
(7) – Ibidem.
(8) – Ibidem.
(9) – Ibidem.
(10) – Ibidem.
Ricardo Soares
31.03.2013
Jornal A voz de Ermesinde
[secção literatura]
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