José Alexandre Ramos: opinião sobre Fado Alexandrino

Impressões da releitura de Fado Alexandrino

Lembro que quando li Fado Alexandrino a primeira vez, há vários anos, o livro andou semanas dentro de mim, sem que fosse capaz de iniciar outras leituras (de outros autores) que não me entediassem logo nas primeiras páginas. Foi de tal modo o impacto que desejei ser realizador de cinema para que conseguisse colocar tudo aquilo num ecrã, pois que não bastavam as descrições que fazia do que havia lido; para contar sobre ele, tinha que dar a conhecer as imagens exactamente como se tinham fixado na minha mente durante a leitura – uma das mais rápidas e devoradoras que tive, mesmo sendo um livro enorme (mais que seiscentas páginas).

A releitura, porém, foi mais morosa, por um lado devido a razões particulares que não interessam à questão, e, por outro, sem dúvida a razão mais válida, para absorvê-lo de maneira diferente. Obviamente que, depois de ter lido tudo o que António Lobo Antunes publicou até hoje, o impacto desta segunda leitura não foi tão forte como da primeira vez, mas não deixo de reconhecer que é, na generalidade da obra, um dos seus livros mais bem conseguidos.

Quem lê o autor pela sua ordem cronológica (é o método que estou a seguir para a  releitura da obra), não ficará indiferente ao facto de Fado Alexandrino ser um livro muito mais maduro que os seus antecessores (foi o quinto que publicou): no estilo, no discurso, no aproveitamento das personagens. Digamos que o autor deixa o tom de um certo queixume que marca os três primeiros livros, segue pela via experimentada em Explicação dos Pássaros (no sentido de já não ser uma catarse da sua própria experiência) e solidifica, neste seu primeiro longo romance, a linguagem cuidadosamente escolhida e o encadeamento de várias narrativas dentro própria narrativa – marca do seu estilo com que nos habituará na dezena de livros seguintes. Porém, ainda não é aqui que o uso do discurso na terceira pessoa do singular cai, o livro é narrado por uma personagem cujo papel é ouvir o que as outras personagens (essencialmente quatro) têm a dizer, personagem que pouco ou nada intervém com o seu discurso mas é o veículo para a expressão das que vamos conhecendo. Mesmo assim, e como já em Conhecimento do Inferno ou em Explicação dos Pássaros, assistimos à transformação do discurso para a primeira pessoa em longos trechos do texto, principalmente quando existe na narrativa a necessidade de introduzir maior subjectividade ao discurso ou experiência da personagem.

Outra grande inovação neste livro é a sua estrutura: divide-se em três grandes partes, cada uma delas subdividida em doze capítulos. É a primeira vez que o autor não dá tréguas ao leitor, já que cada capítulo (todos do mesmo tamanho) não se lê de uma assentada, tanto pelo seu comprimento, como pela forma como foi escrito. Daqui, sem dúvida, a razão do título: alexandrino diz-se de um verso de doze sílabas, e o que é aqui narrado senão um fado, o fado da sociedade portuguesa durante um período conturbadíssimo da sua história recente? As três partes correspondem cada uma delas, respectivamente, a três períodos históricos: antes da Revolução, durante a Revolução e após a Revolução (25 de Abril de 1974).

Resumindo a intriga ao seu mais básico: ex-combatentes da guerra colonial (em Moçambique) reúnem-se num encontro após dez anos do seu regresso. É este período de uma década em que a intriga e os relatos se desenvolvem, dividido pelas três partes de antes, durante e após a Revolução. O encontro é um jantar em que se destacam as vozes mais próximas do narrador (a quem as personagens tratam por capitão): um tenente-coronel, um tenente oficial de transmissões, um alferes e um soldado. Estamos no restaurante e são evocadas as vivências de cada um antes da revolução, quando do seu regresso da guerra; decidem depois do restaurante ir a uma boîte, que marca a transição para o durante a revolução; por fim acabam em casa do alferes, na companhia de prostitutas que trazem da boîte e entramos no depois da revolução. Bastante bebidos, descontrolados, e conhecidas as suas experiências durante os dez anos, em que constatam algumas coincidências de relações pessoais e factos entre si, acabam por assassinar um deles com uma faca de cozinha, e no final é relatado como uma caricatura o plano para se desenvencilharem do cadáver e esquecerem uma noite em todos os aspectos degradante, reflexo da maneira de estar de cada um e como cada qual foi reagindo às atribulações vividas durante esse período de tempo.

É curioso constatar que, mesmo não se tratando de um romance histórico, pois os factos reais da história nem são desenvolvidos, apenas servem de marcadores temporais, o autor acaba por deixar uma espécie de testemunho psico-sociológico da sociedade de então através das experiências subjectivas narradas por cada uma das personagens: a incerteza com que muitos homens, sobrevivendo à guerra, voltaram para casa, uns tentando readaptar-se, outros seguindo por caminhos mais tortuosos, e ainda com o peso de um regime que continuava a oprimir; a esperança de uma revolução que viesse a libertar as pessoas, a mudança prometida, os exageros cometidos em nome de ideologias extremas; e por fim o desencanto, a desilusão em que essa mudança se transformou, servindo apenas os novos donos do poder e dando a sensação de que para os que sofreram pouco ou nada havia mudado. O leitor que ainda não conhece este livro irá com certeza identificar estes elementos não só pelas marcas temporais mas também no que cada personagem representa, a nível sociológico.

E mais nada é dado a dizer pois, tratando-se de António Lobo Antunes, para se chegar à compreensão, é preciso ler de facto o livro. Não há resenha ou crítica que por si possa convencer à leitura. E neste Fado Alexandrino, o escritor respeita muito bem o leitor, pelo menos não subestima a sua inteligência, dando-lhe o prazer de conseguir ver, através da leitura, um mundo muito abrangente com estas personagens, não esquecendo que é do ser-se português que aqui também se fala.


por José Alexandre Ramos
27.08.2012

Comentários

  1. É também, sem dúvida, um dos meus preferidos. Também já o reli e passei por uma experiência semelhante à do José Alexandre. Aliás, reler Lobo Antunes, é excelente porque nos permite saborear melhor tudo; a história, o género de escrita, a poesia e até algo que nos possa ter escapado. Acho uma leitura mais afectiva, se isso existe...

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  2. Leitura afectiva... muito bem pensado. Temos realmente uma leitura afectiva. Eu sei que tenho!

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