24 de janeiro de 2017

Crónica «Nós» com reflexão sobre a sua leitura por Olga Fonseca

Nós

Não precisávamos de falar. Como ele dizia

– Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar

mas muito pouco tempo antes de morrer veio ter comigo e passámos a tarde juntos, sentados lado a lado no sofá. Foi ele quem falou quase sempre, eu pouco abri a boca.

Mostrou-me os braços, o corpo

– Estou miserável

sabia que ia morrer dali a nada e comportou-se com a extraordinária coragem do costume. Coragem, dignidade e pudor. A certa altura

– Para onde queres ir quando morreres?

respondi

– Para os Jerónimos, naturalmente.

Ficou uns minutos calado e depois

– Tu acreditas na eternidade.

Disse-lhe

– Tu também.

Novo silêncio.

– Eu quero ser cremado e que ponham as cinzas na serra, voltado para a Praia das Maçãs.

Novo silêncio. A seguir

– Vou morrer primeiro que tu. Vou morrer agora.

Mais silêncio. Eu

– Ganhei-te outra vez.

ele

– É.

Ele

Ganhamos sempre os dois.

Eu

– Porque é que a gente gosta tanto um do outro?

Ele silêncio antes de

– Se me voltas a falar de amor vou-me embora.

eu

– Sabes onde é a porta.

Mas não voltámos a falar de amor. Para quê? Estava ali todo. Depois quis ver os livros

– Para aí vinte mil, não?

eu

– Mais ou menos, incluindo os muitos que encontrei numa livraria de segunda mão, assinados por ti.

Silêncio. Eu

– Não podia suportar a ideia de que outras pessoas tivessem em casa os livros do meu irmão.

Gesto vago. Depois ele

– António

e silêncio, depois eu

– João

e silêncio. Ou seja um diálogo de amor compridíssimo. Depois

– Se os pais cá estivessem

e esta frase fez-me compreender melhor a sua imensa dor. A mãe para quem a inteligência, num homem, era a forma suprema de sensualidade. E um rabo grande a coisa mais feia deste mundo. Um homem inteligente, na sua opinião, era atraentíssimo.

– Um homem bonito e estúpido ao fim de um quarto de hora não existe

e ainda bem porque, assim, talvez tenhamos algumas chances com ela. A mãe, ainda

– Desafio qualquer mulher no mundo a ter filhos tão inteligentes como os meus.

E ele continuou a falar:

– Depois eu fui para Nova Iorque e tu para África.

Numa altura, depois de África, em que ele estava a sofrer muito meti-me num avião e fui para casa dele. Durante o dia ele trabalhava no hospital e eu ficava às voltas com o Fado Alexandrino. Depois jantávamos juntos e comíamos uns gelados enormes que ele trazia a vermos os play-offs do basquete.

Um de nós

– E jogam com humor

o que é tão raro no desporto. Aos sábados um bocado numa discoteca. Camisas cheias de baton. A certa altura olhou, do sofá, para a estante mais próxima: Um livro de Marcel Pagnol. Ele

– A nossa infância toda.

E eu com vontade de tocar-lhe. Claro que não toquei. As suas mãos, que conhecia tão bem, poisadas nos joelhos. Embora impassíveis estávamos demasiado emocionados.

Ele

– De qualquer modo não nos perdemos um ao outro

eu, depois de um silêncio compridíssimo

– Nunca nos perdemos, não é agora que isso vai acontecer.

Ele

– Vou chamar um taxi.

Silêncio.

Ele

– Acompanhas-me lá abaixo?

Entre a casa e a rua uma distância grande. Era o fim do dia, já não estava muito sol. O taxi à espera no passeio. O chofer, a quem ele operara a mãe, veio abrir-lhe a porta do carro. Ele voltou-se para mim e disse o meu nome. Eu aproximei-me dele e disse o seu. Abraçámo-nos com muita força e, de repente, começou a chorar. Só sentia ossos nas minhas mãos. Mas nada de mariquices, claro, sobretudo nada de mariquices.

Ele

– Não digas a ninguém que chorei.

E sentou-se no banco ao lado do chofer, sem olhar para mim. Não olhámos um para o outro, aliás, mas nunca nos vimos tão bem. O carro foi-se embora. Fiquei na borda do passeio até que desapareceu. E então, de mãos nos bolsos, voltei para casa. Nunca houve um abraço assim no mundo.


António Lobo Antunes
Visão, 15.12.2016


***

Eis que li a crónica de ALA,  que há muito esperava e que adivinhava que ele iria escrever, quando o tempo fosse o devido, quando a dor, finalmente, se tivesse acomodado um pouco melhor no seu coração, até porque já antes o fizera com a partida do Pedro. Aparentemente, o discurso desta crónica não é tão violento, a linguagem não assume foros de tanta agressividade, tanto inconformismo, tanta revolta como a que escreveu, aquando da partida de Pedro; mas não nos iludamos! Só aparentemente o dá a entender... Na verdade, entre o dito e o não dito entre os dois irmãos, entre o que inferimos ou subentendemos, damo-nos conta de um amor fraterno tão belo, mas tão belo, que é impossível ler a crónica até ao fim, sem deixar que as lágrimas nos tomem de assalto;  primeiro duas a duas, depois de quatro em quatro, até que virem uma torrente que nos embacia a leitura do texto.
              
Estupidamente, não compreendo por que razão, e de súbito, o meu cérebro evoca uma peça do teatro do absurdo, ao jeito de Eugène Ionesco, Tardieu ou mesmo de Samuel Beckett. A existir um motivo, ele só pode ser um e com o qual eu própria me dou tão mal. Trata-se do absurdo da morte, e do sofrimento de ambos: daquele que sabe que vai partir e do outro que fica à espera da sua vez.
              
O título é de uma singeleza tal, que o leitor adivinha, desde logo, o assunto de que vai tratar.  
               
A troca de palavras entre os irmãos é de um cuidado, de uma sobriedade, de uma dignidade tais, que nos deixa completamente desarmados para verbalizar o que quer que seja, a não ser deixar que as lágrimas cumpram com a sua função. 
               
O João impede-o «de falar de amor», talvez porque achasse que essa palavra sobejaria, estaria a mais entre eles e, portanto, seria inútil, não seria necessário pronunciá-la. Todos sabemos, que há silêncios que conseguem ser absurdamente ruidosos; eles apenas deixam o grito preso na garganta. 
              
Que ternura, os dois irmãos evocarem a mãe num momento como aquele, procurando, talvez, aliviar o peso da dor que os vergava. O leitor quase que visualiza a cena e esta é demasiado insuportável não só para os sujeitos que a vivem, mas também para o leitor que a experimenta já num outro tempo e num outro nível de percepção, como diria Pessoa; num tempo que António Lobo Antunes quis relegar para futuro; o futuro contendo já a ausência do irmão; em suma, o tempo que ele entendeu ser o apropriado para fazer a sua catarse. 
               
Agora é a nossa vez; é o nosso tempo de fazermos essa mesma catarse; sobretudo eu, que lido tão mal com o sofrimento, o envelhecimento e, finalmente, a nossa finitude. 
               
Tanto amor que pairava sobre ambos, os silêncios pressupunham um entendimento tácito entre eles... tão parcas e simples as palavras que trocavam entre si, evitando pronunciar aquelas que tornariam o sofrimento de ambos ainda mais insuportável. As cruéis! E quanta dignidade na despedida... Ao António,  bastava dirigir-se ao irmão pelo nome - «João»; ao João, bastava responder com o nome do irmão, «António». 
              
Na hora da despedida, e antes que chegue a cruel, a derradeira, parece que só nos é concedido o direito a verbalizar o nome que nos legaram ao nascer, o que nos faz existir e o que levamos connosco quando a hora for chegada.

Assim, para o António segue daqui, deste lugar em que me encontro, um abraço sentido; para o João, aonde quer que ele esteja, o desejo profundo de que repouse em paz.


por Olga Fonseca
e-mail de 23.01.2017
Covilhã

8 comentários:

  1. Li com muita atenção a crónica e a reflexão feita pela leitora Olga Fonseca e fiquei deliciada com a riqueza de vocabulário utilizado, bem como a sua capacidade interpretativa e de expressão escrita.Parabéns Olga Fonseca e obrigada pela partilha.

    ResponderEliminar
  2. Olga, dois textos maravilhosos: o de Lobo Antunes e o teu. Que pena não te dedicares mais à escrita!

    ResponderEliminar
  3. Conhecia o texto do escritor António Lobo Antunes, que também me comoveu bastante. Também acho que te devias dedicar mais à escrita. Tarefa árdua a da crítica literária, nalguns casos levando também à morte (um tema que tanto cultivas, convenhamos!!). Um beijinho, Filipe.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada a todos. Acho que estão a exagerar. É verdade que chorei horrores a ler a crónica do ALA, e de rajada deu-me para escrever o efeito que exerceu em mim. Sim, talvez seja obcecada com a ideia da nossa finitude.... Parece que já é um traço da minha personalidade. Prometo que procurarei viver mais. Obrigada amigas. Obrigado meu querido irmão. Adoro-vos a todos.

      Eliminar
    2. Cheio de arrepios(não de frio), mas sobretudo pelo que escreveu, só me resta agradecer-lhe tão belas palavras sobre um texto maravilhoso de ALA.

      Eliminar

  4. *PUTUGAL!!!!!!!!!!!!!!*
    *hahahahaha.....*
    =========================================

    )))((((((
    (·)...(·)
    ...U...
    [____]

    O Alentejo Portugues?
    Por que Olivenza Espanhola e nao tenhas duvida

    Bela Olivenza sempre Espanhola ❤️

    ================================================

    The Portuguese had a brutal record in the Americas as a colonial power. The most horrendous abuses occurred in the colony of Brazil: natives were enslaved, murdered, tortured and raped in the conquest and early part of the colonial period and later they were disenfranchised and excluded from power. Individual acts of cruelty are too numerous and dreadful to list here. Portuguese Conquistadors in Brazil reached levels of cruelty that are nearly inconceivable to modern sentiments.

    Today, Portugal is the Biggest Racist country that i have ever lived in. I feared for my life there and i consider myself lucky that my family got out alive! I have never lived in such poverty (Sopas dos Pobres everyday) 40% unemployment rate and 60% of the population earn less than $932 USD per month, and that’s considered Middle Class here! Within the European Union it is the worst of the worst place to live in.

    The bottom line is the bulk of the People in the poor country of Portugal exist in a brainless comma that is fed by Ignorance, anti-Spanish hate, and severe Racism of pretty much everybody that isn’t Portuguese! And, Portugal started the Global Slave Trade in 1441 so it is definitely NOT a safe place for Blacks!!

    I found important websites that explain the Severe multi-generational Racism and Hate that exist in Portugal today, and i highly encourage all to read them and spread the word in order to avoid innocent, and desperate people from living or visiting there. Get educated on the Truths about Racist Portugal now.

    1) https://www.theroot.com/a-white-journalist-discovers-the-lie-of-portugal-s-colo-1790854283

    2) https://saynotoracistportugal.neocities.org/

    3) http://www.discoveringbristol.org.uk/slavery/routes/places-involved/europe/portugal/

    4)SOPAS DOS POBRES EVERYDAY IN PORTUGAL BECAUSE OF NON EXISTENT ECONOMY:

    https://www.noticiasaominuto.com/pais/764453/sopa-dos-pobres-foi-criada-ha-anos-mas-ainda-existe-problemas-persistem

    5) http://www.ipsnews.net/2011/10/portugal-crisis-pushes-women-into-prostitution/

    6) https://www.theatlantic.com/business/archive/2013/06/the-mystery-of-why-portugal-is-so-doomed/276371/

    7) https://portugaltruths.neocities.org/

    8) https://portugalwasabadcolonizer.neocities.org/

    9) https://portugalisxenophobic.neocities.org/

    10) https://portugalisaracistcountry.neocities.org/

    I HEREBY ALERT ALL PEOPLE ON EARTH TO NOT BUY FROM PUTUGAL, DO NOT SPEND YOUR HARD, EARNED MONEY GOING THERE AND BOYCOTT ALL PORTUGEE STORES IN YOUR AREA! DON'T BUY THEIR GOODS OR WINES!!!

    THESE XENOPHOBIC RACISTS HAVE TO LEARN AND THE BEST WAY IS TO BLOCK THEM ECONOMICALLY!

    BE CAREFUL FRIENDS!

    +++FEEL FREE TO ADD MY BLOG LINK AND PICTURES TO YOUR BLOG OR WEBSITE FOR FREE! IT IS IMPORTANT TO TELL PEOPLE THE TRUTH ABOUT PUTUGAL!!+++

    Be SAFE friends. Hugs. VIVA Portugal Gypsies! The BEST part and MOST Forgotten part of our Heritage! LUSO? AN invented word because we are all phenotype of Arabs and gypsies in Portugal!!!


    Olivenza sempre terra Espanhola🇪🇸
    Um abraço forte de Portugal🇵🇹


    =====================================================

    ResponderEliminar
  5. Bom dia Olga Fonseca.
    Parabéns pelo seu texto belíssimo. Gostaria de saber porque parou. Há tanto para fazer na obra de ALA. Já li muito mas agora estou dedicada à obra do Mestre.

    ResponderEliminar

Crónica «Nós» com reflexão sobre a sua leitura por Olga Fonseca

Nós Não precisávamos de falar. Como ele dizia – Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar ...